No outro dia, no supermercado do bairro, uma velhota contava a outra, com um sorriso de figos, como o marido estava a recuperar de um AVC: "ele agora faz tudo o que eu quero." Ouço muitas vezes a versão contrária no consultório, mas qualquer delas aponta numa direcção precisa: os velhos casais de hoje enfraquecem juntos, com mais ou menos harmonia, mas sempre solidariamente. E amanhã? Daqui a vinte anos, muitos de nós estaremos em dificuldades sem uma companheira de uma vida ao lado. Esta companheira ( roubo o termo ao PCP et pour cause) é quase sempre cúmplice de histórias de traição, ódio, raiva até, mas também da dura massa de todos os dias, de todas as horas. A juvenilização cultural atirou o casamento-duracell para o pilhão da "hipocrisia" e da "falsa felicidade burguesa". Seja. O que nos parece escapar é que este modelo de vida - 40 anos juntos - é mais subversivo do que um departamento inteiro de sociologia pós-moderna. E é-o porque um laço humano dessa dimensão subverte tanto a biologia como o estado: ao fim de 40 anos são irmãos que deitam juntos, ao fim de 40 anos criaram o seu próprio instituto de solidariedade social. Este laço, com história, peso e tragédia, não tem o frisson do amor telenovelesco, é monótono e difícil de manter. Pois é. Por isso, quando chega a hora, está lá.
Filipe, que delícia, o sorriso de figos, sempre em grande! De todo o modo, muito provavelmente daqui a vinte anos a eutanásia levar-nos-á para onde teríamos de ir apenas daqui a quarenta. Espero encontrar-te lá para nos rirmos um bocado. Abraços, vasco
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