A HISTÓRIA POLÍTICA E CULTURAL da América seria completamente diferente sem a existência de William F. Buckley, ontem desaparecido. Fundador da National Review uma revista de opinião conservadora que dura há 50 anos, autor do talk show mais tempo no ar (33 anos) da história da televisão (Firing Line, que emitia na PBS, o canal público americano), velejador experimentado que atravessou duas vezes o Atlântico, pintor compulsivo e músico dotado, entre muitas coisas mais, Buckley era justamente considerado o fundador e maior referência do moderno movimento conservador da América. No pós-guerra, o sucesso militar e a recuperação económica atribuída ao New Deal de Roosevelt faziam com que o consenso cultural e político da América estivesse firmemente ancorado à esquerda. A Presidência republicana de Eisenhower tinha significado a consagração do consenso keynesiano com as suas grandes obras de infra-estruturas (ainda hoje, o desenho da maior parte da rede de auto-estradas data desse tempo), despesa pública e intervencionismo estatal. O republicanismo de Eisenhower era para Buckley o conservadorismo dos bem-instalados, uma visão elitista do mundo que significava a capitulação da direita às ideias de esquerda. O ambiente cultural era totalmente dominado por liberais (no sentido americano). Neste contexto, a afirmação de Buckley de um radicalismo conservador, feita por exemplo no número inicial da National Review em que se afirmava que o objectivo da revista seria proclamar um sonoro "stop" à marcha da História no sentido do socialismo, parecia estar destinada à marginalidade e ao fracasso. Buckley, Ayn Rand (de quem Greenspan era discípulo e com quem Buckley não se dava muito bem), Hayek, Friedman e mais uns quantos pareciam destinados a serem considerados eternamente vagamente loucos e excêntricos. Mas progressivamente, através da publicação e promoção de novos escritores e cronistas, da capacidade intelectual e de debate de Buckley, da divulgação e popularização das ideias económicas de Hayek, Friedman e outros autores não-keynesianos, da permanente afirmação intelectual de um feroz anti-comunismo assente em argumentos económicos, políticos, culturais e morais, os termos do debate foram sendo alterados. Em 1964, Buckley e o seu movimento conseguiram impôr a candidatura do (então visto como conservador radical) Senador Barry Goldwater ao Partido Republicano. Apesar da estrondosa derrota contra Lyndon Johnson, a mudança do Partido Republicano de um partido da Costa Leste, e do Norte para um partido mais popular e maioritário com base no Oeste e posteriormente no Sul estava em marcha. Buckley foi o grande artífice intelectual da conciliação no movimento conservador das ideias anti-comunistas, anti-impostos e anti-inflação. Católico, entendia a luta contra o comunismo como uma obrigação moral e espiritual. Quando Reagan surgiu na cena política nacional Bill Buckley encontrou o actor perfeito para as suas ideias. A chamada revolução reaganiana, que terminou com 60 anos de dominação do Partido Democrático (desde 1932 a 1994 os democratas controlaram o Congresso) deve tanto a Reagan quanto a Buckley. A emergência de um conservadorismo de boa cara e optimista, debatido e aplicado com sentido de humor, graça e classe eram traços e objectivos comuns entre estes dois personagens centrais da história das ideias da segunda metade do século XX na América. Buckley nunca aceitou um lugar que fosse na Administração Reagan - segundo este, quando lhe perguntou que lugar queria para ele na Administração Buckley respondeu com tipico humor: Ventríloquo!!! Ao assistir à queda estrondosa do comunismo, sentiu-se vingado por anos de luta, por vezes isolada e quase quixotesca contra a acomodação e a resignação do que designava como clube dos capitulacionistas. Como afirmou George Will, um comentador conservador, antes da explosão de Reagan houve a pequena faúlha de Buckley que cresceu solidamente até à deflagração nos anos oitenta. William Buckley estava longe de ser perfeito. A sua filosofia conservadora partia aliás do reconhecimento da imperfeição humana. Ao longo do tempo (50 anos de debate público) tomou posições controversas e infelizes - escreveu um livro em defesa de McCarthy (mais tarde afirmou tratar-se de um erro) e demorou a aperceber-se da necessidade de mudanças nos direitos civis (chegou a defender brevemente teses segregacionistas mas, depois de as renegar, foi um activo combatente contra o racismo e anti-semitismo latentes no conservadorismo americano). Fez afirmações muito infelizes e brutais sobre como abordar a epidemia da SIDA. Ficaram célebres as suas interessantes mas duras dicussões com Gore Vidal e Norman Mailer em finais dos anos 60. Dotado de enorme agilidade intelectual, tinha sempre uma graça ou uma resposta prontas. Exibia um certo ar de dandy (que tantos imitam pateticamente por esse mundo fora e no nosso Portugal). Exprimia-se com um sotaque algo afectado que depois de se estranhar num primeiro momento se tornava idiossincrático e uma verdadeira imagem de marca. Usava linguagem «antiga», literária, caída em desuso com palavras longas e frases cheias de rendilhados e metáforas. Era um cultor da língua inglesa. Uma personalidade dotada de enorme urbanidade de trato, amigável e um conversador inesgotável e agradável. O seu programa de televisão, apesar de ser por vezes dedicado à actualidade, a maior parte das vezes derivava para elevadas discussões abstractas e filosóficas, coisa rara na televisão (ontem ou hoje). Autor de 55 livros (de qualidade desigual, diz-se), de mais de 4000 artigos e editor até 2004 da National Review acabou por falecer à mesa da sua secretária,no seu local de trabalho. Nos últimos anos manifestara-se inquieto com o futuro do movimento conservador - foi crítico da guerra do Iraque e dos neocons e estava longe de ser um admirador de George W. Bush, apesar de se manter fiel ao Partido Republicano. Morre quando o Partido Republicano nomeia um candidato presidencial com algumas semelhanças com Eisenhower que ele apenas relutantemente apoiou (ainda que McCain como todos os conservadores americanos de hoje tenha sofrido inevitavelmente a influência de Buckley e, por isso, ser seguramente mais este do que Ike) e quando o Partido Democrático parece ter ganho nova vida e vitalidade. Apadrinhou e lançou centenas de escritores, cronistas, analistas e jornalistas. Alguns conservadores, outros liberais ou de esquerda e outros ainda que seguiram o seu próprio caminho (indo da direita para a esquerda ou vice-versa). Ontem, o programa de Charlie Rose - um jornalista de esquerda por ele incentivado e que é na minha opinião o melhor entrevistador do mundo - foi-lhe totalmente dedicado (pode ver-se o programa todo em http://www.charlierose.com - é cerca de uma hora). Aqui fica um excerto com a homenagem sentida e comovida a um homem que viveu a vida em toda a sua plenitude, com imensa intensidade e que pouco deixou por fazer. Há vidas assim: cheias, interessantes e em que tudo parece dar certo, encaixar no seu devido tempo. William F. Buckley era um verdadeiro homem do Renascimento.
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