A perda súbita transforma o quê? A pergunta é tão ingénua como parece: não transforma nada. Um dia de praia letal, um passeio de automóvel carnívoro, uma queda que confirma a atracção dos corpos pela gravidade; pouco importa, o facto não é novo. O desaparecimento do outro esteve sempre lá, na exacta medida da dependência, da esperança e do medo. É um requerimento mental continuamente actualizado. Uma perda súbita mantém tudo tal qual estava. Não modifica nada, apenas confirma a nossa fragilidade, tantas vezes disfarçada, tantas vezes negada.
É verdade que a perda (súbita ou não) confirma a nossa fragilidade, é verdade que uma perda súbita, porque mais violenta no embate, não transforma nada, não modifica nada em termos universais. O mundo continua igual ao que era o sol nasce e põe-se todos os dias, mas - e dependendo do que se perde - pode modificar quem perde, pois há algo de si próprio que se desliga, literalmente que desaparece, que se perde e esse vazio modifica se não a vida e a rotina de quem perde pelo menos o olhar sobre ela. Eu até ousaria dizer que a inocência se vai com a perda de algo ou de alguém. Parece-me ousado dizer que a perda não transforma. Joana
"Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie", escreveu Pascal. E apesar disso andamos no território do romantismo, Filipe.
Não deixa de ser curioso: no século XIX havia o mesmo conforto, a mesma idealização da morte prolongada, do tísico, que hoje em dia cultivamos perante a morte repentina do para-pentista alvoroçado.
Julgo que contribuiu para isso a mudança de cenário: do quarto da família para a camarata do hospital. Quem deseja hoje uma morte prolongada no hospital de São José, entre velhos a pigarrear soltando gases? Perderam-se o doce velar da esposa, dos amigos e dos filhos, as amabilidades sussurradas e a gentileza.
A boa morte é a morte repentina. E essa transforma-nos tanto como uma boa anestesia, de facto.
Joana: a perda transforma, sem dúvida. O encolhimento do tempo na perda repentina - como diz o LMJ aí em cima - é que não possui capacidade alteradora.Dois momentos reunidos não permitem a distinção; julgo eu...
Há muitas coisas para perder, súbita ou gradualmente (a visão, o andar, uma perna,uma mama,um animal de companhia a juventude...)que provocam diferentes lutos. E há coisas surpreendentes como esta: O Borges, mesmo cego, ia ao cinema.
A perda de quem muito amamos é sempre horrível.
Não gostaria de morrer subitamente. Quero antegozar a minha viagem.Fazer as minhas despedidas, o meu "adeus às armas", o meu adeus aos afectos e às coisas belas, mas também antegozar os condicionalismos de que me vou ver livre, os sacanas deste mundo,de que nunca mais ouvirei falar...Maravilha! A Dona Morte é excelente! E só existe porque temos vida para a conhecer.Do sofrimento inútil e do encarniçamento terapêutico, não direi o mesmo. Por isso certas democracias civilizadas, já facultam a dignidde na morte a certos enfermos. Quando teremos isso? Com este ambiente reles de Santanas e Jardins?
da perda resulta a ausência, muito difícil de suportar pq eterna...
e o pior é isso mesmo, é a vida ter forçosamente de continuar. quando o que apetece é que pare só um bocadinho, na esperança que dê tempo para que um gajo se habitue a ela, à ausência... Bjs
Querido Filipe tens toda razão. Comentário out of place, fruto de um dia longo de trabalho sem saber o que esta acontecendo ao redor e....sem uma "Victoria" para me re-colocar nos eixos. Desculpa. Beijo carinhoso.
Não dizer nada é definitivamente o mais adequado, quando existem formas alternativas. Mas quando não as há, resta-nos o recurso sempre insuficiente (sempre excessivo) das palavras imperfeitas. Só para lhe dizer que a 'lei da vida' ( que é a mesma da morte) é uma lei injusta, profundamente iníqua. Distribui tão mal a felicidade. E retribui tão mal as nossas dádivas. É isso que me parece imperdoável. E é este também o tolo 'de profundis' que me ocorre, concentrada. Lembro a garra e a sorte salerosa, bem disfarçadas por detrás de um sorriso luminoso, sempre a fazer pontes com os outros.
O modo como abordou o desaparecimento dos nossos, como estando sempre presente nos nossos temores e esperança, fez-me lembrar a "Canção Perdida" do Guerra Junqueiro. O grito de conformação e de rendição (de consolo até) perante a perda mistura-se com a redonda lua, cheia de fantasmas, que aparece todos os dias e que esteve sempre lá. Apesar da saudade ser referida, é dos poemas menos saudosos que conheço. Está cheio de certezas, nada almeja. E isto, de certa maneira, sempre me perturbou. Não conheço ninguém que fique indiferente a ela, mesmo aqueles que nunca vivenciaram perdas nos seus nichos afectivos. Dando o devido desconto às notas geniais de Viana da Mota, pelas quais ela me foi apresentada, ainda hoje ela me dá arrepios! Se calhar a explicação está mesmo naquilo que escreveu.
"(...) Alguém de mim se não lembra Nas terras de além do mar... Ó Morte, dava-te a vida Se tu lha fosses levar!
Ó Morte, dava-te a vida Se tu lha fosses levar!
Com o beijo do sol na face cadavérica, Beijo que a morte esvai em palidez algente, Eis a Lua a boiar sonâmbula e quimérica...
(...) O meu amor escondi-o Numa cova ao pé do mar... Morre o amor, vive a saudade... Morre o Sol, olha o luar!
Morre o amor, vive a saudade... Morre o Sol, olha o luar!
(...)
Flébil, chora uma vez no letargo infinito:
Quem dá ais, ó rouxinol, Lá para as bandas do mar? É o meu amor que na cova Leva as noites a chorar!
É o meu amor que na cova Leva as noites a chorar!
A Lua enorme, a Lua argêntea, a Lua calma Imponderalizou a natureza inteira, Descondensou-a em fluido e embebeu-a em alma.
Triste, expira uma voz na canção derradeira:
Ó meu amor, dorme, dorme Na areia fina do mar, Que em antes da estrela d'alva Contigo me irei deitar!
Que em antes da estrela d'alva Contigo me irei deitar!"
A perda súbita de um eixo repercute-se invisível na arquitectura primária dos dias. Acorda-se de noite e é tão mais escuro. Interrompe-se uma tarefa docemente alheante e cai-nos em cima como uma tromba de água, encharcados ainda antes de tomar consciência do que foi.A perda súbita que se acompanha ao milímetro e nos mostra que a carne quente e doce também pode ser cinzas, que nos ensina que o cheiro perdura nas roupas que ficaram no quarto quando o corpo já se dissolveu no mar. Tens razão, não transforma: apenas revela. (Ps - Ela adorava a série odi et amo) Carolina
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