GOSTO PELOS ANIMAIZINHOS: Eu gosto muito de animais e, por isso mesmo, entendo que devem ser tratados com imenso cuidado. O capão, por exemplo, seca com enorme facilidade se não se tiver cuidado. O fofo coelho, se não for estufado em abundante e rico molho, faz perder a graça das torradinhas que o devem acompanhar em cama alegre. O lombo da vaca deve ser frito em lume forte, formando uma crosta exterior mas mantendo-se praticamente cru por dentro, com todos os sucos e sabores. E, se for destinado ao bife à portuguesa, só deverá ser colocado na frigideira no exacto momento de ir para a mesa para evitar que coza. A cozedura é importantíssima: é célebre o número de pratadas de percebes que são devolvidos à cozinha por terem cozido demais. Há marisco que cozido já morto não se pode tragar. No cozido à portuguesa não se devem pôr as carnes todas ao mesmo tempo na panela, cada uma tem a sua hora. E depois há a primeira abordagem ao animal. A tripa da lampreia tem o seu segredo para ser bem tirada. Já a cabeçorra da galinha é mais fácil, desde que não fuja e a faca esteja devidamente afiada. Na matança do porco convém sempre ter a postos bacias para o sangue, para tudo se aproveitar e nada deitar fora (como para a cabidela de galinha ou de leitão, esta última muito famosa na Bairrada). Cru também (recordo-me agora ao olhar pela janela) se deve comer o pombo, eventualmente com um molho doce. Já os coelhinhos do bacorinho se devem passar bastante. O fígado do peru, devidamente emborrachado, deve ser tratado com esmero pois dele sairá o delicioso foie gras que o irá rechear e deliciar-nos na mesa. Quem pensa que cozinhar é fácil nunca tentou abrir ovos de codorniz para os fritar; aquilo é mais difícil do que abrir latinhas de ovas de salmão, não tenham dúvidas. Nem nunca tirou o anzol da boca de um robalo ou da pescada (é muito difícil de o fazer sem estragar, principalmente se o peixe ainda estiver a estrebuchar). Uma cabeça de pescada em que se note o estrago do anzol perde metade da piada na mesa e desonra o pescador. Tratar bem os animaizinhos é muito difícil, necessita de muito sacrifício nosso, requer muita aprendizagem, exige que lhes ofereçamos muito do nosso tempo à volta da panela mas é uma obrigação que inexoravelmente se impõe ao ser humano.
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