O pai morreu há uns anos e desde então sempre rezou por ele. Descobriu agora que o paizinho toda a vida bateu na mãe. Foi ela, a mãe, que lhe contou antes de morrer: Anda cá, vou contar-te a minha vida. O homem era um ciumento compulsivo e manhoso. Com a idade ficou pior e não deixava a mulher sair de casa sozinha. Como é que vou rezar por ele? E por que razão nunca me apercebi? Esta mulher é agora visitada por uma tristeza dente- de-sabre. É uma desistência da biografia.
Mesmo às portas da morte não hesitou em revelar a verdadeira faceta do marido a uma filha que, porventura, preferia manter-se na ignorância dessa tragédia conjugal. A verdade liberta, é certo, mas esta mãe, talvez imprudentemente, põe um peso gravoso sobre os ombros da filha, a qual, na hora em que perde a mãe perde também a imagem que tinha do pai por quem rezava. Duplamente órfã e sem saber que fazer com isso. Continuo a ser da opinião que independentemente da idade dos filhos (crianças ou mesmo adultos) os pais devem mantê-los afastados , sempre que possível, das pequenas e grandes misérias da sua conjugalidade. Bom post, Filipe. saudações. Zé Serra
Sim, Filipe, compreendo e partilho essa sua hesitação. Não quis, aliás, parecer categórico ou simplista, apesar das palavras o deixarem transparecer. O caso em apreço levanta-me algumas questões: Como é possível a filha nunca se ter apercebido do que se passava entre pai e mãe? E que efeito tremendo tem nela o facto de a mãe fazer essa revelação às portas da morte? E não teria sido melhor não revelar essa «miséria» conjugal (que aliás é crime público)? A intenção da mãe terá sido a de alertar a filha para não repetir na sua experiência conjugal o padrão que a mãe agora lhe revela? Ou, ao invés, quis finalmente libertar-se de um peso que a atormentou a vida inteira (e neste caso, seria a filha a melhor interlocutora? ou foi tão-somente a interlocutora possível?)?. Dito isto, reformulo a «regra» que enunciei no comentário anterior: na medida do possível, aos pais (independentemte da idade dos filhos) cabe a responsabilidade de equilibrarem o grau de revelação das misérias, pequenas e grandes, da sua experiência conjugal de maneira a protegerem os filhos de problemas que, em última análise, só indirectamente lhes dizem respeito. Melhor dizendo, o casal que trate de si (no sentido terapêutico ou, no caso de violência doméstica, no sentido judicial) e «deixe de fora» os filhos. A questão é que é precisamente nas famílias problemáticas (onde esta protecção seria imprescindível) que o emaranhamento e a confusão de papéis se revela «no seu esplendor». Abraço. Zé Serra
Os pais, na hora da morte são, quando têm tempo, sempre muito inconvenientes: filho, vou morrer; filho, deixa a guitarra e vai ser contabilista como o pai; filho, espalha as minhas cinzas no Pacífico numa noite de tempestade; filho, cuida dos cinco filhos que eu tive daquela mulher e que também são teus irmãozinhos, etc.. Essa mãe também não poupou a filha: fechou as suas contas na sua hora e ainda introduziu uma nota de rodapé: filha, sempre foste muito tapadinha e nunca realmente te preocupaste muito comigo. Não o revelou em vida do pai, por receio de discussões entre pai e filha, coisa que tiraria ainda mais o sossego a todos. A filha não se apercebeu, porque não terá tido uma ligação ou uma convivência tão fortes com a mãe que a levasse a desconfiar que alguma coisa não ia bem com ela. Tudo isto é duro e eu sei que o sentimento de perda pode, em algumas circunstâncias, ser menos duro do que o sentimento de decepção (incluíndo essa forma especial que é o remorso). Mas há-de passar e a filha há-de dedicar o tempo que rezava pelo pai a rezar pela mãe.
JJCS: Quanto ao mau timing da revelação, de acordo, claro. Muito mau mesmo. Já quanto ao «Continuo a ser da opinião que independentemente da idade dos filhos (crianças ou mesmo adultos) os pais devem mantê-los afastados , sempre que possível, das pequenas e grandes misérias da sua conjugalidade.»... isso aí - - neste contexto do post - não concordo de todo! Juro que não faço parte do "SOS FEMMES BATTUES" nem nunca soube o que isso é, mas "bater na mãe" (ou no pai!) não é um simpls reduto da conjugalidade, é um crime. E apesar de tecnicamente ser um crime semi-público, em termos familiares é uma "doença de notificação obrigatória"! Aliás, os psis com quem às vezes falo - ou que simplesmante leio - são unânimes no seguinte: - nem todos os segredos da dita conjugalidade devem ser escondidos, pelo contrário. Alguns há (e não é só a violência, ou "essa" violência específica, ditada pelo ciúme 'macho' e pelo sentido de posse...mas outras) que, pelo contrário, devem ser descobertas. E nem é serem assumidas pela vítima, é até desejavelmente pelo 'perpretador' ele próprio. Reveladas aos filhos, sim senhor. E por causa deles mesmos (for their sake). E já agora, digo eu, por causa da vítima, cujas atitudes são julgadas com base em pressupostos errados... Numa família a sério, a dita conjugalidade é sempre exemplar para os filhos (negativa ou positivamente). Quer no quarto, quer na sala, quer à vista, quer escondida. Porque as coisas jamais são dissociáveis. - Ou não será assim?
Está mais ou menos certa, Teresa. Isso tudo depende da idade. Um filho com mais de 18 anos, se tem idade para votar e decidir quem nos governa, também deve aguentar bem as tragédias familiares dos paizinhos. Os pequenitos, pelo contrário, devem ser poupados no que se puder, e isto vale tanto para as manifestações extremas de violência, como para as de carinho... alguma vez o noddy bateu na ursinha teresa ou a apalpou? Lá está.
Ora aí está uma mesa posta por vocês os dois: o que se deve revelar? Felizmente não existe uma comissão coordenadora. Estive a rever as minhas notas e o caramelo talvez tenha razão na tal segunda hipótese. Esta filha não se interessou muito pela clausura ( real) da mãe nos últimos anos. Esta filha adorava o pai e o amor cega, não é? Be as it may, permanece um ponto de uma tristeza imensa - o que me interessa mais, porque a biografia é desistida.
Sim, Teresa, subscrevo o que diz. Aliás, tive a oportunidade de refazer o meu primeiro comentário (o que a Teresa cita), que era um pouco taxativo. Só hoje percebi porque fui excessivamente categórico: a revelação que esta mãe fez às portas da morte «incomodou-me», achei-a injusta e, eventualmente, motivada por razões menos bondosas, quase uma «revanche» ao cair do pano. Corrobora esta hipótese, aliás, o que o Filipe afirma: «Esta filha não se interessou muito pela clausura (real) da mãe nos últimos anos. Esta filha adorava o pai e o amor cega, não é?». A revelação da mãe, assim, seria a derradeira tentativa: para se resgatar a si própria do mal sofrido; para «puxar as orelhas» à filha por se ter aliado ao pai «ogre»; ... Ou então, posso estar a delirar e nada disto vem ao caso. Saudações a todos e obrigado por esta agradável troca de comentários. Zé Serra
voto nos que defendem a tese dos "segredos que devem ir connosco para a tumba" :) mesmo na morte (ou sobretudo nela) devemos tentar ter alguma dignidade. tenho pena quer da mãe quer da filha :(
Reitero que na hipótese proposta o timing é condenável. De resto, confissões à cabeceira da morte só se fazem ao padre... ou, no caso dos filhos, se forem revelações libertadoras. Género "tenho uma conta na Suíça", eheheh... Obviamente que também não pensei em filhos menores, aí as 'regras' alteram-se, existe o dever de protecção e a incapacidade crítica dos filhos. Depois, as generalizações do caso têm tudo a ver com o cenário concreto da vida em que estamos a pensar. E dependem daquilo que admitamos haver de secreto e simultaneamente demasiado grave na dita conjugalidade. Um casamento “branco” deve ser revelado? Não, se tiver sido aceite mutuamente. Um affaire estável do pai ou da mãe com uma 3ª pessoa, deve ser revelado? Sem dúvida que sim, na minha opinião. A homossexualidade de um pai ? Absolutamente. A família é o molde menos “superável” a que somos sujeitos, sem o termos escolhido. Tem de ser verdadeira e não pode ter figurantes escondidos. Bom, depois vivemos no séc. XXI, e hoje em dia raras serão as situações que não se dão a conhecer à força, por via dos desquites, ao menor deslize de adrenalina. Por mim, não terei de certeza revelações algumas a fazer, as ambiguidades/dualidades resolvo-as em vida, com jeitinho, beijinhos e muita conversa (quando a minha casa parece o parlamento italiano – tal como en sus dias parecia a dos meus pais – é que tenho a certeza que fundei uma família e não dei apenas tecto a um grupo de seres com afinidade biológica : ) : )
"tenho uma conta na Suiça, o nome do banco e o número da conta estão num papelinho escondido no....".... fónix, morreu, mais valia o pai ter revelado que era paneleiro.
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