Leigo em direito, que não em bom senso mínimo, vi The Wire e, portanto, compreendo: escutas feitas para uma coisa não podem ser utilizadas para outras. De outra forma viveríamos num estado-microfone. Ainda assim, o PM não é um cidadão qualquer. O que estará de tão delicado nas conversas, entre ele e Vara, sobre a TVI? Nunca saberemos. É o tributo que o sol paga ao nevoeiro, não e?
O bom senso ajuda muito, mas nem sempre resolve. Senão vejamos:
A versão que corre por aí de que as escutas a Vara que envolvem o PM teriam que ser previamente validadas pelo Presidente do STJ é, como bem classifica o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, abstrusa. Eu acrescentaria ainda, preocupante.
Adianto, ainda assim, o seguinte raciocínio, não vá dar-se o caso, recorrente entre nós, de vencer a corrente abstrusa.
Um processo crime inicia-se com a “notícia do crime” (art.º 248.º do CPP).
Ora, as tais escutas, a serem consideradas nulas, sê-lo-iam (ao que consta) com fundamento na violação do art. 11.º, nº 2, al. b) do CPP (Compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal: Autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro -Ministro e determinar a respectiva destruição, nos termos dos artigos 187.º a 190.º).
Diz o nº 7 do art. 188.º do CPP,
“Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.”
E o que nos diz o nº1 do art. 248.º?
“Os órgãos de polícia criminal que tiverem notícia de um crime, por conhecimento próprio ou mediante denúncia, transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias.”
Pergunta:
Ouvido numa escuta legalmente autorizada um terceiro que anuncia, promove e/ou relata a prática de um crime, porque raio é que tal não pode (não deve) ser tido como notícia de um crime, para os efeitos do art. 248.º do CPP e, em consequência, ser promovida a sua investigação autónoma pelas vias normais? (leia-se, não utilizando aquela escuta como meio de prova)
Caro Nuno Albuquerque: A sua pergunta é muito pertinente e perfaz a “vexata quaestio”. Numa estado de direito a resposta só pode ser afirmativa, mas o “advogado do regime” - Dr. José Miguel Júdice - já afirmou que tais escutas são nulas...
Nuno, um comentário apenas sobre a interpretação abstracta da lei, porque não gosto de falar de processos concretos em curso, sobretudo quando não os conheço. Se bem vejo, as escutas das conversas de um cidadão comum onde intervenha uma das pessoas referidas no art. 11º (e a sua gravação) não são ilegais, porque o alvo da escuta não era uma dessas pessoas. Se podem ser utilizadas como notícia de um crime contra uma dessas pessoas é outra questão, aliás complexa. Por outro lado, note-se que o presidente do stj tem que autorizar a *transcrição* de todas as conversas onde intervenha uma dessas pessoas, mesmo que não seja suspeito e independentemente de haver aí indícios da sua responsabilidade criminal. Por isso, parece-me incorrecta a conclusão segundo a qual o envio para o stj significa, automaticamente, a existência de indícios de responsabilidade criminal das pessoas referidas no art. 11 que intervenham na conversa.
Se os conhecimentos fortuitos - é assim que se designa a descoberta de um crime através de escutas feitas a propósito de outra investigação - valem para o cidadão normal, também valem para o PM. Outra solução parece-me violar o princípio da igualdade (artigo 13º da CRP).
Deste modo, o sentido que se pode atribuir à norma introduzida pelo PS com a reforma de 2007 é a de exigir que, na situação normal de o PM estar a ser investigado por um crime conhecido, as escutas sejam autorizadas pelo STJ, o que faz sentido atendendo às razões de Estado e à sensibilidade política de processos envolvendo os mais altos cargos públicos, tudo isso recomendando que os processos sejam tratados ao mais alto nível judiciário (ou seja, no STJ).
Dito isto, já não se pode atribuir à norma o sentido de tornar inválidas em relação ao PM escutas que seriam válidas em relação a qualquer outro cidadão, criando justiças penais diferentes, consoante se trate de um cidadão comum ou do PM. Donde, os conhecimentos fortuitos, que valem para o cidadão normal, também têm de valer para o PM, sendo, nesta outra hipótese, as escutas consideradas válidas mesmo que ordenadas pelo juiz de instrução.
Em resumo, penso que o PGR devia recorrer para o tribunal constitucional, pedindo a declaração de inconstitucionalidade da interpretação da norma feita pelo STJ (a ter sido aquela que é relatada nos jornais).
É por ser uma questão complexa que deixo a pergunta. Ainda assim, considero que a Justiça e o Direito (assim mesmo com maiúscula) não se compadecem com uma interpretação que não permita prosseguir uma investigação com base numa notícia de crime adquirida no âmbito de uma escuta legal. Quanto à ultima parte do seu comentário, tendo a concordar. Ou seja, tendo por base o nº2, b) do art. 11.º, a remessa prévia ao Presi. STJ é uma condição de validade do que quer que lá se encontre. Portanto, com ou sem relevância criminal. Ainda assim, resta saber se o art. 11.º é aplicável sempre que intervenham PR, PM ou PAR, ou apenas e só quando se encontrem numa das situações previstas no art. 187.º, nº4. É que o art. 11.º é aplicável "nos termos dos arts. 187.º a 190.º...
Olá PC, é sempre um consolo ver-te subir a bordo. Concordo inteiramente com a 2ª parte do 2º parágrafo. Tenho imensas dúvidas sobre o assunto e acho-o fascinante.
Como tenho dúvidas relativamente à 2ª parte do 3º parágrafo. Estão duas pessoas a falar ao telefone. Existem indícios de responsabilidade criminal. A pessoa referida no art. 11º que intervenha na conversa que transmite indícios de responsabilidade criminal estará calada?
(claro que o nosso amigo Ricardo Costa do conselho de disciplina da liga resolveria a questão em duas penadas…)
O que eu aprendo convosco. Ó Vasco, não te rias muito, porque o inspector que apanhou ( até ver) estes sucateiros é o mesmo que foi corrido á pedrada no Apito Dourado por ter importunado Pinto da Costa e Valentim.
Nuno, eu creio que é aplicável em qualquer caso (quer dizer, mesmo que não sejam os big shots os alvos das escutas). A remissão é genérica para os arts. que tratam das escutas, pelo que não se tira daí grande argumento. E até pode dizer-se que só essa interpretação explica a redacção do art. 11º ("conversações onde intervenham"), porque a autorização da intercepção (e da gravação) de conversas onde essas pessoas "intervenham" supõe, aí sim, que sejam elas o alvo das escutas. Vasco, olá! Desculpa, mas não percebi o sentido da tua questão.
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