Acabo de ouvir na RTP-N Emídeo Rangel a dizer que quer que as crianças da Casa Pia, vítimas dos abusos sexuais, agora adultos, venham à televisão falar para validar os seus testemunhos. Se preferirem, com máscaras.
Até onde vai a capacidade de fazer fretes! Que morbidez, que voyeurismo, que atitude imbecil!
Este personagem não tem a mais pequena noção ou respeito pelo que estas pessoas já sofreram e passaram em criança.
Este personagem não percebe que aquilo que as vítimas sofreram em criança não muda com o passar dos anos ou pelo facto de se tornarem adultos: aquilo ficar-lhes-á marcado pela vida toda.
Este personagem não percebe sequer que, num Estado de Direito, este tipo de situações são resolvidas nos Tribunais, segundo a Constituição e as demais normas aplicáveis: é aí, é nos Tribunais que se validam os testemunhos, não nas televisões que, na sua opinião, tanto vendem sabonetes como presidentes. E, nos Tribunais, as crianças já ganharam, não precisando mais das televisões nem de apresentadores nem sequer de comentadores como do que falo.
Arregacem as mangas, sujem-se quanto quiserem, dêem conferências de imprensa, enfeitem-se com os aventais, esfalfem-se no trabalho, trabalhem nos tribunais superiores, marquem almoços nos restaurantes do costume com as pessoas do costume, façam o que quiserem para inverter a decisão condenatória de 1ª instância.
Mas, de uma vez por todas, deixem as vítimas em paz!
Quanto ao personagem em causa, não lhe ouvirei mais nenhuma alarvidade. Metem-me nojo. Mete-me nojo.
A pretensão de não acatamento das decisões dos tribunais, o quase incitamento à desobediência civil, a acusação de corrupção ou parcialidade sobre os juízes e consequente divulgação da ideia de que o julgamento da praça pública / "tribunais populares" é que é moralmente válido, numa manifestação de crescente desrespeito pelos tribunais, muito preocupante por contribuir para enfraquecer o principal pilar do estado de direito que queremos, tem-se tornado moda e quase aceite pela sociedade como normal, pela habituação. E essa tendência representa um grande risco para os mais fracos e desprotegidos, como neste caso aqueles que foram crianças da Casa Pia e sofreram aquelas brutalidades prepotentes e covardes.
Sem qualquer intenção de provocação clubística (o assunto é sério demais para brincadeiras), acho que contribuiu bastante para que a sociedade assista com mais passividade à contestação / desrespeito aos tribunais, o processo Apito Dourado. A maneira como o processo foi conduzido pelo Ministério Público, sobretudo ao pré-contestar qualquer decisão contrária à acusação, todo o clima de desconsideração pelas decisões tomadas pelos sucessivos tribunais, com declarações acintosas e insolentes relativas aos juízes por parte de personalidades com responsabilidade e poder social e político (sem contar com a multidão anónima), que ficaram impunes e que incendeiam a sociedade numa cruzada anti-tribunais. Tudo em nome das paixões e ódios clubísticos.
Até essa altura, a justiça dos Tribunais era criticada (e bem) por lenta. Mas tinha-se a ideia de que, regra geral, "a justiça tarda, mas não falha". Desde essa altura, a sociedade permite-se discordar / pretender validar ela própria as decisões dos tribunais. Com a degradante consequência, a que recentemente assistimos, da atribuição de horas e horas de tribuna televisiva aos condenados do processo Casa Pia, numa aparente complacência e cumplicidade dos que os convidavam ou acompanhavam. E agora, para arremedo de tribunal, quer esse senhor que entrem os queixosos, para que o tribunal popular ouça os seus argumentos.
Neste processo Casa Pia, fica-se com a ideia de que parte da sociedade tudo fez para impedir os progressos do julgamento (incluindo com as alterações legisltivas que o VLX referia outro dia), desacreditar os sucessivos juízes, desacreditar / desconsiderar as acusações, num trabalho surdo mas contínuo na comunicação social. No entanto, o grosso da sociedade, a quem repugna e indigna o sofrimento cobarde infligido a crianças, nem estamos presos por interesses a que as acusações não alastrem, confiamos que o tribunal teve todos os elementos e que as penas dadas se justificam, face a prova feita em tribunal. Mas, com o antecedente de contestação às decisões do Apito Dourado,todos estamos mais um bocadinho resignados a que outros contestem e desrespeitem o Tribunal.
Para perceber a "personagem" e muitos (demasiados, que é o que assusta nestas sucessões de crónicas) como ele, que perante toda as histórias deste caso (e são demasiadas, mesmo as derivadas do processo..) é preciso entender o drama que foi para demasiadas "elites", "natas" e "faixas altas" não estarmos perante "arguidos" que não são padres, beatos, 'fássistas', neo-cons, membros da 'Opus', da "direita", amigos do Bush ou de um qualquer Banco da direita não-cooperante, dirigentes e simpatizantes do F.C.Porto ou Majores autarcas e o elenco pode continuar.... [Imagine se nestas histórias aparecessem, sei lá, o Major ou o rebento, o Meneses de Gaia, um qualquer Jardim da Madeira ou do BCP, uma tia lisboeta que desprezasse os 'indies' subsidiados, o João Moutinho depois de ter ido para o Norte, o Hulk dos túneis,etc - alguma vez teríamos este movimento societario tão criterioso a examinar a Justiça, a Imprensa, etc ] Neste "mainstream" de modernaços, actualizados e letrados, as instituições, a Justiça, a Imprensa (que, sinceramente, tão timida e condescendente tem sido no auscultar tantos e multiplos pontos de vista...), os detalhes juridicos do "processo", as "incongruências" de avaliação e julgamento, as "campanhas negras" e outros plurais aviltamentos são objectos de instrumentalização para macular tal "mainstream" que vive de uma propria interpretação e fundamentação dos 'valores' que julgam absolutistas. O que se percebe é que para eles, a re-escritura da 'história' tem de ser o apagar das versões, todas, as que não se enquadram com a falta de limites de que se julgam investidos para definir as físicas e metafísicas da "realidade" mais as dinâmicas associadas que querem estabelecer não só para eles, mas para todos os outros. Por isso, o argumento do "Barba Azul" é incompleto, pois o "Apito Dourado" contempla personagens que, mal ou bem, se afastam deste 'mainstream', não tem grandes 'marketings' nem 'mensagens', são mais 'tradicionalistas' ou 'provincianos', vendem 'seats' em vez de 'kits', reagem por instinto e gostam de bola e cingem-se aos tangos de corte de palácios acessórios - nos estádios, nas "Casas" de clube e nos Restaurantes de mariscadas, caldeiradas e feijoadas, ou outros cenários de menos glamour e mais boçalidade.
Basta ver o que disse esta personagem aquando das decisões judiciais que colocaram as escutas que envolviam Sócrates na gaveta. Nessa altura era incompreensivel contestar a decisão judicial... como era possível existirem vozes que contestavam tais decisões e queria a justiça nos media?!
E pensar no papel que este sr teve durante anos na área da informação em Portugal.
A bola, quer se trate da trombeta da luz quer da que passa pelos relvados, ou mesmo da que passou pelos tribunais e foi absolvida, é pura brincadeira e passatempo, não tem valor. Um dia ganham uns, nos outros ganha outro. Com a bola pode-se brincar.
Já com estas crianças e os abusos hediondos que sofreram não se pode brincar. É sério demais.
São dois mundos e intervenientes completamente estranhos entre si, efectivamente, e isso explica muito do envolvimento sinistro à volta do processo Casa Pia, bem como o folclore mais ridículo que sinistro à volta do Apito. No entanto, continua a parecer-me que embora processos completamente diferentes, aos condenados do Casa Pia aproveita a habituação por parte da opinião pública a ver desconsiderar as decisões dos tribunais com complacência bovina.
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