O meu pai já tem metástases nos ossos mas não sabe. Ainda passeia , vai ao jardim e até tem cuidado com a dieta. Não sei o que fazer. Digo-lhe a verdade ou não?
Se eu soubesse responder a essa pergunta era um monstro. Note que partimos da mentira para a verdade, numa prioridade lexical forçada pela cronologia. Primeiro sabemos nós, depois retemos a informação e, assim, mentimos suspensivamente. E lá voltamos ao kierkegaardiano lugar de trânsito para mercadorias avariadas, até porque nunca sabemos o que outro já sabe. Sem mais filosofia: um homem que vai morrendo a cuidar das flores tem o direito a ser enganado.
"um homem que vai morrendo a cuidar das suas flores tem o direito a ser enganado." Mas nao a fazer dieta se tem metastases ossseas. O meu pai perguntou-me 3 meses antes de morrer se nao devia ter cuidado com o colesterol. Fiz que pensei e disse-lhe a prevencao do colesterol ë para 20 ou 30 anos depois; come o que quiseres. Afinal se morreres daqui a 30 anos com as arterias envelhecidas que te importa? Morreu passado 3 meses. Esta foi a frase mais inteligente que eu disse na vida e trouxe-me algum conforto.
Acho que sabes a resposta, FNV. A única vantagem em não enganar é quando pensamos que o doente deve ter tempo de dizer as suas últimas vontades, mais aí vai sempre a tempo. Eu tive essa experiência com o meu pai, e tive de enganar pai e mãe. Até me enganei a mim próprio, com convicção: fui comprar ervas ao Minho a um curandeiro para curar o cancro do meu pai, já em estado irreversível, que ele tomou com (aparente) agrado e esperança. Nunca se sabe quem engana quem, porque nunca sabemos o que o outro já sabe. Nunca o saberei. É complicado.
Eu devo pertencer a uma família maluca. Três dos meus tios foram imediatamente informados pelos médicos nacionais. E o mesmo aconteceu há relativamente pouco tempo com um primo* (um dos que em 62 foi de Coimbra para o hotel de Caxias, para depois ser expulso de todas as Universidades portuguesas) em Genève. Curioso é que todos continuaram a "cuidar das flores" e um deles ainda se preocupava em poupar o coração. *A acreditar no retrato que li aqui há tempos do Caramelo numa qualquer caixa de comentários, talvez ele tenha conhecido o Xico.
Só um pormenor a acrescentar à história dos enganos: fui comprar ervas para curar o cancro do meu pai e ele tomou-as para curar um vago problema mais ou menos grave ainda não identificado nos intestinos, ou assim me convenceu ele disso. Um jogo de enganos. Curiosamente, maloud, os médicos e enfermeiros alinharam neste jogo, sem seguir o costumeiro protocolo de dizer a verdade e toda a verdade aos doentes e ainda bem que assim foi, no caso do meu pai. Não sei qual o critério. Não sei o que pensar da dúvida da pessoa da história do FNV. Não dizer a verdade nestes casos é intuitivo, não é coisa que se interrogue. Mas não tenho nenhumas certezas absolutas sobre isto. Talvez tenha conhecido o Xico, sim, maloud, mas tinha que me fornecer mais dados para ter a certeza. Quer relembrar-me, pelo menos, o meu retrato?
Eu mentia e obrigava-me a nao chorar enquanto ele estivesse entre nos. Ia comprar bilhetes para o futebol para ele e para um amigo dele - com quem anda sempre a desgarrada pois nao sao do mesmo clube! E eu ia junto, todas as vezes! !
Acho que o li no AspirinaB, num post do Valupi. Era elogioso até dizer chega. Se o encontrar, reproduzo aqui, pedindo licença ao FNV, é claro.. O Xico Delgado do CITAC, no papel de Tartufo, chega?
Ia-me esquecendo. Aqui há uns anos o Vítor Veloso, ainda director do IPO aqui do Porto, disse-me que nos países latinos era hábito informar a família e só depois, se se justificasse, o doente. Segundo ele essa prática era a mais ajustada ao temperamento do sul da Europa.
Eu queria saber. Prefiro infeliz de olhos abertos que feliz de olhos fechados. Eu sou transparente. Esta noite ao jantar um amigo disse-me, com muita piada, qdo eu lhe contava que era transparente acerca de uma situacao recente que me poes completamente infeliz. "Hä muita forma de ser transparente, quando estäs no duche de manha continuas transparente mas como estä embaciado näo te consegues/conseguem ver." Um querido. Ao dar noticias por vezes um olhar, um abraco, ate um embaciar os olhos podem dizer tudo sem cortar completamente a esperanca. E os medicos nao sao deuses, enganam-se, por isso, nem estao a mentir. Devem apresentar em % e dizer que hä excepcoes que nao ha 100%. A familia deve dizer jä que conseguiste ultrapassar, agora vive a vida melhor mesmo que julguemos que ë ja amanha.
Nao gosto de falar na morte. Ja pos um post sobre uma crianca e morte e ignorei. A minha companheira de viagem para a Australia descobriu na quarta antes da partida (partiamos 10 dias depois) que tinha um neo raro cerebral. Tenho uma amiga em "cuidados paliativos". Os meus pais jä morreram e lembro cada crianca que me morreu ou chegou morta. Nao ë nada relevante mas prefiro falar de nao fazer dieta nessas circunstancias. Ä vida ë curta para nos darmos ao luxo de cortarmos relacoes, nao perdoar, fazer dieta do colesterol aos 70, nao apreciarmos os pormenores que fazem a vida valer a pena, nao disfrutar com a familia e os amigos. Têm-me dito estas com um ar tao zen. Esta ë para o Caramelo (dedo martelado). Estou com um ar descansado e zen porque depois da dor apreciamos mais cada prazer.
Mas ser honesto. Näo ser bruto mas ser honesto. As pessoas näo querem que lhe digamos que vao morrer mas querem, e tem o direito, de saber o que vai acontecer, gradualmente.
pelos casos pessoais ou de que tenho tido conhecimento, parece-me que a prática "normal" nos nossos hospitais é também a de informar primeiro a família e a partir daí entrarem no jogo de enganos que o Caramelo tão bem caracterizou (quem engana quem?).
num exemplo que me foi próximo, poucas horas antes de se findar ele quis beber champanhe e a família estava relutante. fónix, disse um dos familiares, deixem o homem beber todo o champanhe que lhe apetecer...
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