NOVOS HERÉTICOS II: O Lutz deixou aqui um comentário que merece reflexão e, na medida do meu possível, resposta.
Talvez sejam coisas diferentes, mas, da transcrição que li, em vários lugares, da famigerada entrevista, não me pareceu que nem uma, nem outra, justificassem a imolação da senhora na praça pública, com insultos infames e direito a fotografia. Sobretudo se tivermos em atenção as circunstâncias. A entrevista foi editada? Aquelas palavras têm necessariamente o sentido de que quem as profere se está a marimbar para o sofrimento dos outros e quer apenas ver uma catástrofe ao natural? Podemos todos garantir que, numa situação de entrevista não preparada, temos sempre um controlo total sobre nós próprios, de forma a não dizer frases ambíguas ou infelizes?
A comparação com os heréticos não foi um efeito de estilo. A partir de certa altura, os heréticos deixaram de ser apenas os que recusavam, com pertinácia, as verdades e os dogmas da fé, para serem também, entre outros, os supersticiosos e os que não prestavam o devido apoio ao Santo Ofício. Muito longe, portanto, do sentido original da heresia - mas escarmentada, julgada e punida como heresia. Tal como então, as reacções enfurecidas e indignadas a que assistimos não atendem propriamente ao Mal, mas àquilo que, na sua ausência (ou pelo menos: na incerteza da sua presença), é necessário construir como Mal para a confirmação - por oposição - de uma identidade colectiva como boa. Não interessa verdadeiramente o que foi dito, nem o que a senhora quis dizer, mas sim o sentido negativo que se pode imputar às afirmações. Só que o Mal precisa de um suporte, e quanto mais visível melhor. Vai então de corporizá-lo na pessoa, que é sempre o alvo mais fácil, em nada importando os danos que injustamente se lhe possam causar. É isto que chamo atavismo - ou, se preferir, falta de emancipação.
Não acredito na teoria da entrevista editada neste caso, embora tenha ontem assistido a um caso flagrante desta técnica. Talvez hoje ainda seja possível visionar uma peça com várias entrevistas de rua que a Tvi fez em relação à introdução da tarifa nocturna nos postos de abastecimento. Citando de memória: um individuo faz algumas declarações sobre o assunto, ao que o jornalista então pergunta se ?acha aceitável este aumento?. O inquirido diz então algo como ?eu acho que? e a entrevista é imediatamente cortada para a opinião de outra pessoa acabando por propositadamente ?colar? os dois raciocínios, porventura, distintos. Isto é uma técnica de manipulação e é realmente perigosa. Voltando ao nosso caso a dúvida é porque escolheu a Sic a opinião de Dulce Ferreira quando, provavelmente, detinha mais entrevistas de outros portugueses? Nota-se na Sic, e na Tvi, uma tendência clara em moldar as opiniões dos voxpop seleccionando aquelas que se direccionam para o efeito que a jornalista pretende. O jornalista ao escolher as opiniões acaba por forçar a sua própria opinião no espectador, quando deveria tentar equilibrar opiniões diferentes e, nunca, forçar numa direcção.
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