AGORA ENTENDI - MAS ACHO MAL: Pelos vistos, não fui só eu que fiquei confuso com a questão da "inversão do ónus da prova". Em nota à Imprensa publicada no dia imediatamente seguinte (via Incursões), a Presidência da República esclarece o alcance das palavras de Jorge Sampaio:
"Quanto às [medidas] de natureza penal, tratar-se-ia da possibilidade de passar a considerar crime, que poderia denominar-se de enriquecimento ilícito, a aquisição de bens, acima de determinado valor, em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados pelo adquirente. Cessaria a punição se o adquirente provasse que os bens foram adquiridos por meios lícitos, por exemplo uma doação; ou se provasse que, apesar de os não ter declarado ao fisco, os valores com que pagou os bens foram licitamente adquiridos. Também não haveria punição se a conduta que deu lugar aos rendimentos (por exemplo crime de corrupção, de branqueamento de capitais de tráfico de droga), constituísse crime e o infractor fosse punido por ela. (É o que acontece no crime de difamação. O Ministério Público prova que a imputação feita a alguém lesa a honra e a reputação dessa pessoa e quem foi o autor da imputação. O presumível autor prova as escusas absolutórias: a) - que tinha interesse legítimo na imputação; b) que, em boa fé, podia ter a imputação por verdadeira). Coisa bem diversa seria presumir-se que quem enriquecesse inexplicavelmente e não explicasse a proveniência lícita dos seus bens pudesse ser condenado pelo crime de corrupção. Isso, sim, violaria o principio de culpa".
Bom. Fica então afastada a possibilidade de se estabelecer uma presunção de culpa (relativa a crimes de corrupção, de branqueamento, de tráfico de influências, etc.) a partir da titularidade de bens ou rendimentos incongruentes com os rendimentos conhecidos. A tal que seria, como escrevi no post anterior, contrária à Constituição, por violar a presunção de inocência. Trata-se, afinal, de criar um novo tipo de crime, que consiste em "adquirir bens acima de certo valor em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados pelo adquirente". Aliás, creio que, onde a nota diz "adquirir", deve ler-se, latamente, "possuir", mais de acordo com o espírito da proposta. Esta ideia é má por uma razão simples: não existe um dever de não adquirir, ou de não possuir, bens e riqueza incongruentes com os rendimentos "fiscalmente declarados". Existe, isso sim, um dever de declarar os rendimentos reais, para cuja infracção se criaram os crimes fiscais. Mas adquirir ou possuir bens desconformes com as declarações fiscais não ofende, em si, interesse algum. Um exercício simples: suponhamos que sou um trabalhador honesto e temente a Deus, e que todos os meus rendimentos têm origem lícita. Porém, por razões que só a mim dizem respeito, não declaro quaisquer rendimentos ao fisco. Posso ser sujeito a uma liquidação de imposto estabelecida com base em presunções. Concedamos até, em abstracto, que essa omissão possa, em dado sistema jurídico, constituir um crime (por violação de deveres de cooperação com o Estado). Mas, ao adquirir ou possuir bens com os meus rendimentos de origem lícita (é disso que aqui se trata), não ofendi o Estado. Consequentemente, não tendo infringido dever algum com a aquisição e posse dos bens, não tenho que lhes justificar a origem. Essa riqueza incongruente é, não uma ofensa ao Estado, mas um indício da prática de crimes fiscais e / ou de outros crimes rendosos - que devem por isso ser investigados (creio que é nesse sentido que se devem interpretar os comentários de alguns magistrados à proposta do PR, insistindo sobretudo no reforço dos meios de investigação). Como bem se compreende, esta situação é muito diferente daquela em que se encontra um condenado por crimes que habitualmente geram vantagens económicas, a quem a lei actual impõe (bem ou mal, não importa aqui) um dever de justificação do património incongruente, sob pena de se presumir que ele provém de uma actividade criminosa (ver post anterior). Tudo o que nos leva ao ponto seguinte: as epígrafes são muito importantes, se souberem condensar a verdadeira natureza das normas e, assim, revelar o que realmente se encontra em jogo. Ora, o nome "enriquecimento ilícito" é enganador, porque o que na realidade se quer punir, como crime em si, é o enriquecimento incongruente com as declarações fiscais, ou, quando muito, o enriquecimento injustificado, independentemente da (i)licitude da origem dos bens.Que eu saiba, nenhum país foi tão longe: o sistema mais vigilante era o do confisco civil americano até 2000, e até esse já foi abandonado (ver post anterior). Enfim, o paralelo feito na nota da Presidência da República com o crime de difamação é triplamente infeliz. Em primeiro lugar, porque as imputações difamatórias lesam efectivamente a honra do visado - e por isso se compreende que dêem corpo, de per si, a um tipo de crime - embora essa lesão possa ser, em certas circunstâncias, justificada. Diversamente, a aquisição e / ou posse de bens de origem incerta, em si mesmos, não lesam interesse algum. Se indiciarem ou resultarem de crimes fiscais ou outros, a punição deve enquadrar-se nas respectivas previsões legais. Em segundo lugar, e em consequência, a justificação das imputações difamatórias opera a um nível valorativo, de conflito e ponderação substantiva de interesses, enquanto a justificação dos rendimentos seria uma mera regra de prova, destinada a mostrar que não existiu... qualquer lesão. Em terceiro lugar, e de novo em consequência, seria conveniente que o Presidente da República explicasse aos seus assessores que a repartição da prova, nos termos apontados na nota (o Ministério Público prova a conduta típica; o arguido prova a justificação), é uma fantasia e não tem qualquer expressão no modelo processual penal português. Regendo-se por um princípio de objectividade, o Ministério Público actua à charge et à décharge e deve colaborar no apuramento da verdade material - mesmo que isso implique provar a justificação da conduta. Também nestes assuntos, há que ter serenidade.
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