AS PINÇAS DO CROWN PROSECUTION SERVICE: Dentro de dias, cumpre-se o primeiro aniversário sobre o homicídio de Jean Charles de Menezes, morto com sete tiros na cabeça pela polícia inglesa, por ter sido confundido com alguém suspeito de ter ligações aos atentados terroristas de 7 de Julho de 2005 (um resumo dos factos pode encontrar-se aqui). Os agentes dispararam no cumprimento de ordens da hierarquia, que instituiu uma política de atirar a matar"for dealing with suspected suicide bombers, arguing that it was necessary to shoot suspects in the head if it was feared they might set off a bomb on their body". Hoje (ontem), depois de uma investigação da Independent Police Complaints Commission, o Crown Prosecution Service (CPS) anunciou que não iria acusar nenhum dos agentes pela morte da vítima. A justificação é a seguinte: "os dois agentes que dispararam os tiros mortais fizeram-no porque pensaram que o Sr. de Menezes lhes tinha sido indicado como um bombista suicida e que, se não o matassem, faria explodir o comboio, matando muita gente. Para acusar esses agentes, teríamos que provar, para lá de uma dúvida razoável, que eles não se basearam, honesta e genuinamente, naquelas suposições". Misturam-se aqui, indevidamente, coisas muito diferentes. Em primeiro lugar, haveria que descrever de forma mais precisa aquilo em que os agentes acreditaram. Uma coisa é acreditar que, em concreto, aquele particular suspeito transporta explosivos cuja detonação está iminente; outra é acreditar que a pessoa em causa foi identificada pelos serviços de inteligência ("had been identified to them") como terrorista que pode transportar explosivos e que é, por isso, um suspeito enquadrável no plano shoot-to-kill. A distinção faz toda a diferença: no primeiro caso, as circunstâncias que os agentes erroneamente supõem existir dar-lhes-iam, de facto, se existissem, um direito (um dever) de atirar a matar, desde que fosse a única forma de evitar o atentado. No segundo caso, não, porque a ordem shoot-to-kill perante a mera identificação de alguém como "suspected bomber" é ilegal, e não justifica o homicídio perpetrado. Em consequência, só no primeiro caso, e já não no segundo, ficaria excluída a responsabilidade por murder, subsistindo, eventualmente, uma responsabilidade por manslaughter, se houvesse indícios de que os agentes avaliaram negligentemente a situação. De modo que seria fundamental, na explicação pública da decisão, mostrar que os agentes efectivamente acreditaram que aquela concreta pessoa transportava explosivos com o intuito de se fazer explodir no metro, e as razões dessa suposição (afinal, parece que as explicações do "casaco grosso" e da "fuga" não são corroboradas pelas testemunhas). Compreende-se que o CPS não tenha querido entrar nas "especiosidades" desta distinção. É que a segunda alternativa, a verificar-se, implicaria necessariamente afrontar o problema da (i)legitimidade da ordem e do plano shoot-to-kill. Não é certamente por acaso que, no comunicado do CPS, não se encontra a mais leve referência, como adjuvante da decisão de não acusar, ao facto de os agentes se encontrarem "no cumprimento de ordens". Isto apesar da assunção expressa, por parte da hierarquia, de que essas ordens existiam (e continuam a existir). Só isso explica, também, que a investigação do CPS se limite aos agentes que dispararam os tiros, e remeta todos os outros - nomeadamente os responsáveis pelo plano - para um limbo obscuro de "erros de planeamento e comunicação". As consequências desta decisão não são evidentes. Por um lado, pode argumentar-se que, ao fundamentar o arquivamento do processo no erro (falsa suposição) dos agentes, o CPS está implicitamente a admitir que a sua acção foi ilegal e que, portanto, o plano shoot-to-kill é ilegítimo e incapaz de, por si só, excluir a responsabilidade criminal de quem actua ao abrigo dele. Por outro lado, também se pode ver na ausência de acção contra os responsáveis pelas ordens uma coonestação implícita da legitimidade das mesmas. A Metropolitan não esperou 24 horas para reafirmar que a política é legítima e que continuará a aplicá-la. Como escrevi há precisamente um ano (último post aqui), o problema não é tanto a determinação da responsabilidade dos agentes que dispararam os tiros, mas sim uma avaliação clara da legitimidade da política traçada pela polícia inglesa. A administração parece continuar satisfeita com ela, mas seria interessante conhecer o juízo dos tribunais (em Inglaterra, os tribunais levam-se a sério na sua função de proteger os direitos das pessoas contra o poder público). O CPS, ao conceber a decisão de arquivamento nestes moldes, deitou fora a oportunidade de obter uma decisão judicial sobre o assunto. Espera-se que não tenha outra.
Caro Pedro, here we go again... Mas porque é que eu já sabia que a sua reacção iria ser esta? Houve um inquérito, independente da própria polícia mas não suficientemente independente para condenar a polícia. O que é que falta? Levar o caso aos tribunais? Mas porque é que os tribunais serão mais independentes? E se os tribunais voltarem a não condenar a polícia, até onde teremos de apelar para conseguir o veredicto justo? Repito o que disse no ano passado: é muito fácil exigir justiça quando não temos que decidir, numa fracção de segundo, se alguém é um terrorista a abater ou não. Lamento a morte de um homem por inépcia da polícia, mas lamentaria ainda mais se a negligência da mesma polícia permitisse a morte de muitos outros homens.
caro Pedro, provavelmente, já sabia que a minha reacção ia ser "esta" pelas mesmas razões por que eu já sabia que "essa" ia ser a sua... Respondendo: 1) Os tribunais (ingleses) são mais independentes porque não fazem suas as preocupações e os interesses da administração em geral (e da polícia em particular). Isso tem sido notório no desmantelamento, por decisão judicial, de partes importantes das leis anti-terrorismo inglesas, que têm merecido aos juizes críticas particularmente violentas. 2) Embora ainda não se conheça o teor integral do relatório da IPCC (que será publicado, segundo consta, ainda este ano), parece que a dita Comissão concluiu que havia indícios suficientes para uma acusação (ver este artigo de Janeiro passado: http://www.guardian.co.uk/menezes/story/0,,1691521,00.html Porém, como sabe, a decisão final pertence ao CPS. 3)Não estou tão seguro que seja mais "fácil" pretender justiça nestes casos do que ficarmo-nos, simplemente, pelas lamentações de uma fatalidade, ou um custo, ou como lhe quisermos chamar. Estou em crer que não. 4) Tal como no ano passado, o texto não é sobre a eventual responsabilidade dos agentes que tiveram de decidir no momento, mas sobre a legitimidade de uma política genérica oficial. Mesmo assim, já pensou que os tribunais também podem avaliar essas dificuldades de decisão "no momento" e considerá-las, precisamente, como fundamento de uma absolvição? Porquê, então, esse medo da justiça? Um abraço.
Um pouco à margem do vosso ( PP e PC) debate: fiquei sempre com a ideia de que a morte do cidadão brasileiro se inscreveu em cima dos atentados que a precederam. Não discuto a existência da política que o PC condena, perigosa, de facto, mas a verdade é que não se repetiu , pois não? A minha pergunta - não retórica - é: essa política existe?
Vamos por partes. 1) Não tenho medo nenhum da justiça inglesa. Se o caso é para levar à justiça, leve-se. Aceitarei o veredicto, qualquer que ele seja. Não estou tão certo, repito, que os inquéritos da administração sejam assim tão parciais, ou que os tribunais também não cometam erros que favorecem o governo. Lembram-se dos irlandeses condenados por um atentado do IRA e que só depois de vinte anos na prisão foram ilibados? O que me parece, Pedro, é que o problema não é legal, mas político. O que está em causa não é a crítica a um eventual (e ilegal) abuso da força, mas à legitimidade de uma política de segurança. 2) O que se deve perguntar, pois, é se essa política é legítima ou não. Eu continuo a dizer que sim. Os erros, fatalidades, acidentes, custos decorrentes dela (e que se devem evitar e punir, se há culpas) serão sempre menores do que os que adviriam da repetição de um atentado. É tão simples quanto isto. Compreendo a preocupação com os direitos ameaçados, embora não esteja certo de que este caso se deva colocar ao mesmo nível da legislação antiterrorista de Blair. Lamento tanto como qualquer pessoa de bem que um inocente tenha sido morto por um erro estúpido. Mas recuso-me a ver a polícia inglesa, e esta política de segurança em concreto, como "terrorismo de Estado" ou qualquer coisa de semelhante. É isto o que nos separa. E não é pouco, embora não seja suficiente para nos zangarmos.
Pedro, acho que a diferença está bem retratada. Mas como é que se pode perguntar pela "legitimidade de uma política", no sentido em que creio que usa a expressão, sem ser à luz de critérios jurídicos...? (zangarmo-nos...?!?! A que título?!)
Filipe, se perguntas pela existência do shoot-to-kill enquanto previsão de medidas a tomar perante certa situação, ela "existe" tanto quanto qualquer política pode "existir". Se perguntas se ela existe nos seus resultados, não te sei responder: era essa, precisamente, a questão do texto.
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