LIBERDADE E PODER: Francisco José Viegas escreve um artigo no Jornal de Notícias (com link também na Origem das Espécies) onde alerta para o perigo de, num futuro próximo, nos virmos a encontrar nostálgicos da liberdade. Alinha vários perigos para a liberdade, num medley (evidentemente exemplificativo) que vai do cartão único à "auto-censura" que certas instituições se terão imposto relativamente à celebração do Natal, passando pelo episódio dos cartoons dinamarqueses. Não conheço a lei do cartão único (creio que ainda não foi publicada), excepto pelo que se disse nos jornais, e por isso não posso falar sobre ela. Claro que, em matéria de protecção da privacidade, há uma lei de bronze segundo a qual o perigo cresce na razão directa da concentração dos dados pessoais (ou dos respectivos suportes de acesso). Mas confesso que, neste aspecto, me preocupa mais o facto de qualquer gato pingado exigir, para os propósitos mais desvairados, o nosso número de contribuinte, sobretudo quando o netbanking teima em utilizá-lo como validação (!) das operações bancárias: hoje, a primeira e a terceira letra do último apelido têm quase o mesmo grau de confidencialidade do que os algarismos do número de contribuinte. No que diz respeito à "auto-censura" nas celebrações de Natal, parece que se trata de mais um mito urbano, ou quase, assente em duas ou três anedotas (o caso de Birmingham pode ver-se aqui e o caso de Zaragoza aqui). Não chega a ser epifenómeno, quanto mais sintoma. Enfim, resta-nos o caso dos cartoons, em relação ao qual disse na altura que, acima de tudo, me assustavam as coligações espúrias contra a liberdade de expressão. Mesmo que os exemplos dados por FJV possam não ser muito significativos, a ideia que está na base do artigo - a resistência contra os carcereiros de cérebros - é cada vez mais importante. Tenho escrito sobre o assunto algumas vezes, embora os ângulos que me interessam não sejam sempre populares. E, neste ponto, não posso estar mais de acordo com FJV: tudo é um problema de liberdade. Só que a questão não acaba aí: começa, apenas. Porque este é o caminho mais exigente: seria facílimo invocar a liberdade de celebrar o Natal, ou de publicar cartoons, como decorrência da "nossa" cultura (entenda-se: da cultura reconhecida pelos poderes), em versão sofisticada do bordão "quem está mal, muda-se". Mas quando se põem as coisas no plano da liberdade, como devem ser postas, "the pattern becomes more complicated". É que - digo-o com pedidos de clemência a todos os que vêem na Revolução Francesa o tremendo erro da Humanidade - a liberdade só o é quando supõe a igualdade. E esse é o passo que nem todos estão dispostos a dar. A título de exemplo: só podemos convencer alguém de que não é ofensivo celebrar, nas escolas públicas, o nascimento de Cristo, quando não nos sentirmos ofendidos com a celebração, nas mesmas escolas, de acontecimentos homólogos exaltados por outras religiões. A partir daqui, torna-se óbvia a extrema delgadeza da linha que separa a liberdade "dos outros" da contrariedade à "ordem pública", aos "costumes" e noções semelhantes. Nem por isso ficamos dispensados de examinar e ponderar, em cada caso, os interesses em confronto. Isto é uma questão de princípio, para que a Liberdade não seja só a "nossa liberdade", ou, mais precisamente, o poder disfarçado de liberdade. Mas não é só um princípio: é também um factor de pacificação (de co-integração) entre comunidades e culturas diferentes. Onde, melhor do que nas escolas, se pode aprender que o companheiro de carteira não é necessariamente um bombista suicida, um assassino de crianças ou um bebedor de sangue humano?
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