Ontem, no meu gabinete, esteve sentada à minha frente uma figura familiar. Tem entre 20 e 40 anos e vive no país do TGV, do Allgarve, do pão sem sal, do enxame de auto-estradas, do Magalhães, das energias renováveis e do ensino compreensivo. Não obstante, é regularmente espancada pelo marido*. Ao longo dos últimos anos, esta figura familiar fez crescer no terapeuta uma neoplásica irritação. Aqueles porcos impedem-me de trabalhar, infernizam a vida dos filhos e matam, lentamente ( ou de uma vez) , as mulheres que os escolheram. As orgulhosas organizações católicas - pró-vida e pró-família - podiam ir para o terreno ? Podiam.
* esta aparente contradição será objecto de um futuro texto.
Quando saí da faculdade observei no SU uma mulher que tinha cerca de 50-60 anos e hematomas por todo o corpo, monstruosos e múltiplos. O marido tinha-a espancado com o cabo da enxada. Quando lhe disse que podia apresentar queixa e que eu deporia por ela em tribunal disse-me: "ele desreipeitou-me mas eu não o queria desrespeitar". Ainda hoje esta frase me arrepia. Tive que sair do consultorio. Eu estava tão irritada com a mulher como odiava o homem que lhe tinha feito isso. E essa irritabilidade permanece.
Eu sou feminista, independente, costumo dizer que babar, babar só em lactente mas tenho um medo horrível de me apaixonar por um homem e ficar parvinha como a maioria das mulheres que conheço. Fulano disse isso, não quer que eu vista isto, ele até disse, etc ao ponto de ele fazer tão globalmente parte da vida, que mudam a maneira de vestir, sentem-se gordas, velhas e feias se ele não as aprovar, uma destruição da auto-estima e auto-imagem que o passo seguinte não será uma atitude masoquista que possa levar a aceitar quase uma bofetada (porque há atitudes e palavras que doem mais que bofetadas)e pensar que talvez merecessem?
As condições de crescimento e de vida são sempre determinantes para aquilo que cada um é. Mas a responsabilidade individual existe. Ou não?... Tenho dias em que nem própria credito nisto. É tudo uma questão de resiliência, fruto do acaso, portanto?
Isto deixa-me completamente indignada. Não consigo perceber estes homens!Mas pior, não consigo perceber como é que há mulheres que dizem que os seus homens lhes batiam só que no fundo elas mereciam. Mereciam? Ninguém, em momento algum, merece isso.
Não são novas e não são do séc XXI. É uma doença. As doenças curam-se ou eliminando o agente que as causa ou modificando o hospedeiro.
Mas para haver um agressor, tem de haver uma vítima. A coragem de dizer basta, basta tê-la. Não é uma critica, por vezes, não vemos o óbvio. A questão tem de ser colocada assim: este tipo dá-me mais momentos de prazer/felicidade ou de dor/infelicidade e se dá mais de infelicidade é porque não te serve. Não precisa de te bater, já te está a maltratar. Saí dessa. A seguir vais achar que tu é que tens os defeitos, ele é um anjo, etc. Respeito. Quem não te respeita, não te ama. Aturar viver junto já é dificil tem de ter alguma recompensa, e pancada não é concerteza.
O mais surpreendente é constatar estas coisas em ambientes supostamente esterilizados para estas coisas - assustou-me ver isso em jovens (20+) casais de namorados que são estudantes universitários ou recém-licenciados! A cultura mais "pop" já sublima um pouco disto - veja-se especialmente o primeiro livro da Trilogia "Millenium" que, em Português, foi traduzido como "Os homens que odeiam as mulheres"...
Caro Filipe: Considero o seu comentário... "As orgulhosas organizações católicas - pró-vida e pró-família - podiam ir para o terreno ? Podiam"... ...Como ofensivo e fruto de ignorância sobre o que se passa no terreno. Faço parte da Direcçao de uma Associaçao das que descreveu (fora a parte do "católica", pois a vida nao se resume a uma religiao, e a parte do "orgulhosas", pq quem está no terreno sabe que o seu trabalho é sempre uma gota de água no oceano) e, para além de todo o trabalho com grávidas em dificuldade e mães recentes, tem sido desenvolvido um trabalho enorme (pelas técnicas da Associação) tendo em vista a igualdade e a inserçao social e profissional das mulheres. Atribuo, portanto, esta parte do seu post a desconhecimento e a uma cedência à demagogia que é muito habitual. Está por mim desde já convidado a vir conhecer o trabalho da Associaçao. Gostei e concordo com o sentido do resto do post. Cumprimentos
Errado, Luís: essas associações ouvem-se muito em assuntos como o casamento gay e o aborto, mas nunca neste. Tal como não vejo, nem ouço, condenações violentas à violência masculina nas homilias mediáticas dos padres e bispos. Zero.
Já no séc.XXI mas ainda com o (sim! anacrónico!) ditado "entre marido e mulher não metas a colher". Esta aberrante disfuncionalidade humana percorre todas as faixas etárias e todas as classes sociais. Como é um cancro mais ou menos subterrâneo, os números são muito difíceis de quantificar mas, diz quem sabe, não é raro ver pessoas com mais formação académica no sujo caudal.
Quando as organizações sociais se começarem a mexer mais (não creio que estejamos no ponto zero mas ainda há muito trabalho pela frente), quando socialmente qualquer tipo de agressão for muito mal visto, a imagem que os agressores passarão a ter deles próprios já não será a da "valentia" cobarde.
Não sou masculinista nem compreendo muito bem -nos dias de hoje-, as feministas. Acho (tenho a certeza) que podemos estar na vida sem "sermos parvinhos" (homens e mulheres)...
De qualquer modo, em qualquer relacionamento a pedra basilar que determinará o sucesso (mesmo que possa ser finito no tempo) é o respeito. Por si próprio e pelo outro.
Errado, Filipe: os assuntos casamento gay e aborto é que são muito mais ouvidos do que esse, e não são essas associações que estabelecem as pautas dos noticiários. Quanto à homilias, qual é a paróquia que frequenta?
Provocação distraída: escrevi " homilias mediáticas". E o que frequento ou deixo de frequentar não lhe diz respeito, Gonçalo. Não adianta esconder a realidade: esse sector da sociedade é relapso na luta contra um inimigo declarado da família.
O Filipe está portanto convencido que "estar no terreno" corresponde a "ouvir-se muito". Ficaria tão surpreendido se conhecesse a realidade. Nao pode dizer que nao o convidei a conhece-la.
Não, não estou. Mencionei um aspecto essencial nas sociedades actuais ( talvez não tão importante no século XV: a publicidade. Se ouvíssemos e lêssemos , frequentemente, bispos, padres e leigos condenar isto com a truculência com que condenam o aborto e a lassidão moral-sexual, outro galo cantaria. E nem é necessário dizer que a Igreja, durante muito tempo, aceitou como normal este estado de coisas. Felizmente já não é assim.
É evidente que o que frequenta ou deixa de frequentar não me diz respeito, nem me interessa. O que eu quis dizer é que o Filipe, como muitos, apenas tem acesso às "homilias mediáticas" e não às outras. E quem decide o que é mediático ou não, não são as associações referidas. E infelizmente, violência doméstica não é um assunto tão mediático quanto aborto e casamento gay.
Tenho a impressão contrária. Ver a Igreja preocupadíssima com o assunto no mesmo espaço que usa para falar de outros temas, seria algo muito, mas mesmo muito, mediático.
O Filipe fez de facto confusao entre "vir a terreno" e "ouvir-se". O filipe disse: "As orgulhosas organizações católicas - pró-vida e pró-família - podiam ir para o terreno ? Podiam" E, em resposta ao meu comentário, disse também "essas associações ouvem-se muito em assuntos como o casamento gay e o aborto, mas nunca neste". Eu afirmei que existe, por parte dessas Associaçoes (daquela em que eu participo e de muitas outras que conheço) trabalho enorme e muitas vezes ignorado pelos media no terreno. O Filipe queria as câmaras da TVI. Eu também. Mas continuo a preferir o trabalho no terreno aos fogachos tipo Sócrates. O trabalho é mais honesto e, sobretudo, dá mais frutos. O convite para conhecer a realidade e depois poder dar-lhe a publicidade que lhe diz faltar continua de pé. Abraços
E , já agora, informo que tenho pesquisado na net notícias de acções, simpósios, reuniões, sessões de esclarecimento: quase zero ( encontrei uma mesa-redonda na Univ. Católica. Também seriam fogachos mediáticos-socraticos? Enfim, it takes a constant struggle to see what's under your nose ( George O.).
Diz o Filipe "Sim,Luís, o terreno era o da exposição pública" Acho intelectualmente honesto que reconheça isso. O que eu disse, e fica demonstrado, é que o Filipe chamou "vir ao terreno" a "exposição pública". Eu apenas disse que "estar no terreno" é muito mais do que isso e que o seu desconhecimento da realidade quando convertido em afirmaçäo de inexistência de trabalho no terreno era um erro de raciocínio e ofensivo para as muitíssimas pessoas que trabalham no terreno. O convite continua de pé.
A igreja sempre foi bastante ponderada no forçar da natureza humana. Como a violência masculina integrada na real guerra dos sexos - em que cada um tenta receber mais do que dá (Dawkins e o the selfish gene é transparente sobre isso) estará felizmente num acelerado declínio por força dos casamentos hoje voluntários e da repressão da violação, que aceleram a seleccção natural de traços menos repugnantes. Pode levar algum tempo, mas está em curso essa melhoria, penso.
Um post fortíssimo. E sim, já escrevi vária vezes sobre isto - não vejo as tais associações católicas pretensamente próvida - ou aIgreja católica, com o peso social que ainda tem, denunciar publicamente a violência contra as mulheres. Não há, em lado nenm, condenações veementes à violência masculina nas homilias dos padres e bispos ou papa. Pelo contrário. Não me esqueço das palavras de uma jovem universitária espancada regularmente pelo namorado ( de famílias bem)que me dizia entre lágrimas que era a vontade de Deus suportar aquilo. A jovem em causa pertence a uma seita, quero dizer a um movimento católico florescente (ultramontano) e o seu director espiritual concenceu-a a aturar a violência do "noivo", pois fazia parte dos desígnios divinos de salvação. Refiro-me a um certo movimento católico que andou por aí em rezas a defender a os valores da família, e a defender prisão par a smulheres que abortam.. Sim, eles estão no terreno...
Ora, ora, ora, o Filipe tem com cada ideia, fartinhos de contribuir para a luta contra a violência de género, não seja injusto, não se lembra DESTA "intervenção no terreno"? http://womenageatrois.blogs.sapo.pt/434862.html
Não sei há qto tempo foi essa sua experiência no SU, henedina, mas importa relembrar que estamos perante um crime público que todos nós devemos reportar.
Ana Dir-lhe-ei pessoalmente o nome da Associaçao a que pertenço e mostrar-lhe-ei pessoalmente o trabalho diário no terreno, no qual se inclui um projecto precisamente sobre igualdade de dignidade entre homens e mulheres e inserçao social e profissional de mulheres e um outro de formaçao a mulheres presas. Deixe-me contacto. Cumprimentos
Ana. No norte dizemos "não ensine o padre nosso ao vigário"... Carla, tem muitos livros sobre violencia domestica. Professora (Psicologa) da UM. Eu sou coordenadora do NHACJR do meu hospital e pedi ao meu director de serviço para criar o Núcleo do, nesse tempo, PAFAC, ainda interna(qdo ainda não era de lei ter Núcleo o meu hospital). No meu hospital quem trata da mulher maltratada teve a delicadeza de me falar para saber de "experiencias" de criação e divulgação. Faz parte da minha consulta como pediatra, detectar, orientar e reportar. Claro que não era público qdo eu era interna geral.
Não quis ensinar padre nosso a ninguém, Henedina, apenas me pareceu importante deixar esta anotação por uma questão de princípio meu - nunca é demasiado recordar - e pq ter lido num outro comentário seu "tenho um medo horrível de me apaixonar por um homem e ficar parvinha como a maioria das mulheres que conheço" fez-me pensar que poderia estar perante alguém mto jovem, recém licenciada, portanto.
OK. Concerteza que me podia ensinar o padre nosso. O que eu quis dizer é que as situações não são a preto e branco. E que apesar de esclarecida e lutadora no terreno na defesa de outras mulheres, ao apaixonar-me, dou a outra pessoa o poder de me fazer feliz mas tb o de me magoar (mas isso é outra história...). E não sei até que ponto uma mulher esclarecida, suficientemente apaixonada com um homem dominador não fica dominada por ele, não ao ponto do mau trato mas ao ponto de perder autonomia (o que para mim já era mau trato :).
"As orgulhosas organizações católicas - pró-vida e pró-família - podiam ir para o terreno ? Podiam." Mas não era a mesma coisa.
Perdia-se parte do dominio masculino. Havia mais divorcios. E estes sim, são pecado. Afinal até foi a Eva que nos fez perder o paraíso.
Consultas gratuitas, fnv? Devo dizer obrigada? Se me acontecer, já tenho terapeuta. E ainda para mais "era" atraente assim não preciso de ficar com medo de fazer transferencia para o terapeuta.
Faz nada, Filipe, á a "apatetação" mais deliciosa que há. Quem ama com qualidade não magoa, ponto.
Que consulta que quê, cara Henedina, "tomaramos-se" a gente (leia-se psis) ter esta capacidade, como seria tão mais fácil gerir as nossas paixões (e tão menos interessante e fantástico, há que o dizer com toda a frontalidade).
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