À MARGEM: Há expressões jornalísticas que nos habituamos a ouvir na televisão desde a infância que se referem a acontecimentos de que nem sempre há imagens. Cabe nessa categoria a expressão "à margem" quando referida a encontros de representantes políticos de países diferentes, que resolvem encontrar-se à margem das cimeiras ou conferências. Não havendo imagens, vamos imaginando e associando tais "papos" a momentos privados, de alguma solenidade. No entanto, as imagens das recentes conversações entre Freitas e Condoleeza à margem da cimeira da NATO vieram desmistificar o imaginário deste tipo de encontros, reconduzindo-os ao equivalente a uma cena de engate numa discoteca: Condoleeza entra numa sala acompanhada dos numerosos gorilas da sua turma. Freitas aguardava emboscado e sai-lhe ao caminho (como se a aguardasse no corredor da casa de banho das mulheres), gesticulando e sorrindo nervosamente. Condoleeza vira-se para um dos gorilas e certamente pergunta "Quem é este gajo?" - ficando a saber quem é o personagem, tipo "é aquele que se fartou de dizer mal do teu irmão mais velho". Esclarecida, aceita no entanto conversar com o charmoso, lembrando-se dos amigos comuns. Encaminham-se uns passos para o lado, em pé, junto a uma parede - sob o olhar atento dos gorilas e a generalizada indiferença da pista - onde Freitas desbobina uns chateões, terminando a conversa com um "aparece lá no bairro, para tomarmos um café". "Sim. Claro. Ou aparece tu no meu cabeleireiro, que também tem um café porreirrinho". Ela segue com a sua turma, pedindo a alguém que lhe lembre de não se lembrar dele. Ele regressa ao balcão e pede mais uma batida de côco, convocando energias para um novo brilharete... à margem.
posted by Neptuno on 5:57 da tarde
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HONNI SOIT QUI MAL Y PENSE: A forma como o choque tecnológico foi apresentado nas TV's, sobretudo na pública, diz tudo. Ao tom gongórico e triunfal do apresentador, sucedeu-se um divã ( "colecção", em persa, mas aqui em duplo sentido) de imagens absolutamente inócuas: meninos a chocarem contra uma parede amarela, entrevistas de rua, imagens de pessoas sentadas em frente ao computador. Depois uma declaração do ministro Manuel Pinho a explicar que 500 portugueses irão estagiar em Xangai e São Paulo para aprenderem. Ou seja, nenhum contraditório, folclore absoluto, transmissão da ideia de que algo que não se sabe bem ainda o que é, já é bom, essencial, indispensável. Onde param os jornalistas que até há bem pouco tempo tinham pesadelos com o controlo governamental dos meios de informação? Mais tarde na noite, na SIC-N, um outro ministro, outro estilo, Vieira da Silva, a explicar pausadamente as alterações ao rendimento minímo. Embora com naturais anseios em melhorar o aspecto do peixe, Vieira da Silva propõe coisas claras e nobres, como a da necessidade de dar especial atenção aos velhos: estes não se podem reciclar nem receber formação profissional. A diferença entre um e outro momento televisivo? É a diferença entre a discussão política e a pura propaganda, mas também a diferença entre um programa especializado e um telejornal de grande audiência...
AS CRIANÇAS SÃO O MELHOR DO MUNDO: Excepto as que pisaram minas, as que perderam de goleada para a malária, as que não tiveram acesso ao ensino especial, as filhas de pais alcóolicos, as que nasceram infectadas com HIV, as que não nasceram porque não podiam, as que não nasceram porque não dava jeito. Exceptuando os casos em epígrafe, as que sobreviveram são uma beleeezaaa; não é mesmo?
posted by FNV on 9:00 da tarde
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ACABEI DE VER : No telejornal da televisão do estado o que é afinal o "choque tecnológico": três pré-adolescentes ( um com aparelho nos dentes) a chocarem contra uma parede almofadada amarela. Está bem, aceito. Mas porquê amarela?
posted by FNV on 8:57 da tarde
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O PRECEITO DE DELEGAÇÃO:"De saber que os infiéis podem dividir-se em duas categorias. A primeira é a daqueles que habitam os seus próprios países; neste caso a guerra santa é um preceito de delegação, isto é, basta que os crentes que estão com eles a façam (...)." Esta configuração da jihad renega uma parte da sua origem etimológica e mística - esforço, superação - para acentuar o rebordo bélico. E é curiosa, esta configuração, porque na época em que foi escrita ( século XVI) e no território (o Malabar, grosseiramente, a costa ocidental da Índia) que descreve, os infiéis contra quem Zinadím incita à guerra santa são portugueses, cristãos, logo um dos povos do Livro, aos quais era permitido o livre exercício do culto. Recordo-me de um dia ir ao volante do meu carro, em pleno período de discussão sobre o Islão, e ouvir na TSF o Claudio Torres ( arquéologo em Mértola e aderente, parece que é assim que se diz, do BE) explicar , indignado, que a história das invasões muçulmanas da península ibérica estava mal contada, porque "eles tinham sido convidados a cá vir". Não que me espante, longe disso, com a desonestidade intelectual alegremente praticada nos meios académicos: o que me preocupa é a ignorância que ela fornece. Ocorre hoje em dia em alguns círculos islâmicos, e refiro-me aos meios moderados onde pontificam K.A. Souroush, A. Malek e Fátima Midrissi, e também ao weblogestan iraniano, um debate interessante: é precisamente sobre a desconstrução ( ó ironia das ironias!) da jihad. Os radicais palestinianos, melhor dizendo, operando a partir das membranas palestinianas, apropriaram-se de uma interpretação holísticamente bélica do conceito, mas históricamente sólida da jihad. Esta leitura foi bovinamente - roubo o arroubo aos amigos do Blasfémias - aceite por muitos intelectuais ocidentais, e criou (e cria) imensas dificuldades aos meios islâmicos moderados, sobretudo os universitários e literários. Tanto é assim, que o apelo de Zinadím feito no Malabar do século XVI, é precisamente o mesmo que Bin Laden, Hassan Hattab, Djamel Berghal e outros confessos seguidores da doutrina salafita ( a actual, pois que existiu outra com o mesmo nome, e moderadíssima, a de Al Afghani e demais companheiros do jornal Al-Urwa, no século XIX) dirigem hoje aos muçulmanos que residem na Europa: combater os infiéis, mesmo nos seus próprios territórios.
JORNALISMO INDEPENDENTE: Leiam no Público de hoje, na página 36, a peça com o título "Pais não passam o tempo suficiente com os filhos", assinada pela jornalista Bárbara Wong. Não, não é nenhuma notícia sobre um estudo pedo-psiquiátrico, nem o relatório de um congresso de psicologia infantil. É um frete à Skip, marca de detergentes ( sim, leram bem, aliás a jornalista refere duas vezes o nome da marca e aluga um parágrafo inteiro ao director de marketing da empresa) que está muito interessada em que as crianças portuguesas "brinquem ao ar livre"... É jornalismo independente, lá isso é. Não sei bem é de quê.
posted by FNV on 7:34 da tarde
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MEA CULPA: Sempre pensei que não seria o pai mais babado do mundo, que as suas primeiras semanas de vida não seriam as mais inesquecíveis da minha, que fugiria de limpezas, banhos e choros, que não conseguiria acordar três vezes por noite e manter uma conversa em gugudádá, que não ficaria fins de semana em casa a tomar conta dele, que não me afligiria exageradamente com uma tosse ou um espirro, que não derreteria perante uma careta risonha, que não andaria às suas ordens em minha casa, enfim, que não seria feliz sobrando tão pouco espaço. Estava rechonchudamente enganado.
posted by Neptuno on 7:13 da tarde
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EUFORIAS PROVINCIANAS: Manchete do Diário as Beiras sobre Coimbra: " Cidade eufórica com Dolce Vita". "Dolce Vita" é um centro comercial com piscinas, e eu, conimbricense, estou eufórico. Tão eufórico, que fui à papelaria com a intenção de comprar um jornal mas acabei por trazer um folheto publicitário.
SCHLEIERMACHER:"But even in the happiest of times, even with the best intents, where is the person who can arouse through communication the capacity for religion not only where it already is, but also implant it and inculcate it on every path that could lead to that?" ( On Religion; Speeches to its Cultured Despisers, 1799, da edição inglesa da Cambridge U.P., 1996)
Não estamos no happiest of times...
posted by FNV on 9:01 da tarde
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ELEIÇÃO DO PAPA: Pouco passa das cinco da tarde e parece que já temos Papa. Provavelmente, a decisão só será divulgada às oito da noite, para aproveitar os telejornais. A facção derrotada já estará a preparar uma nova lei de limitação do mandato papal.
ELEIÇÃO DO PAPA NA TV: Já "mexe" com as nossas diligentes e implacáveis televisões. Os sufrágios serão comentados por Zé Mourinho; D. José policarpo será acompanhado por um grupo de motards com a bandeira nacional se, por acaso, sair da capela para fumar um cigarrito; quem acertar no nome do novo Papa via SMS habilita-se a ganhar um frigorífico; os cenários serão inspirados na simbologia do "fumo branco", pelo que as emissões serão feitas a partir de uma conhecida discoteca da capital; a banda sonora será o "Cavalos de corrida", dos UHF.
A BANCADA: Na cidade dos doutores, a bancada central dos sócios da Académica é composta por advogados e médicos, comerciantes e professores, tudo boa gente temente a Deus e ao fisco. Esta boa gente passou o jogo de hoje a imitar o som dos macacos de cada vez que o jogador N'Doye, negro espadaúdo, tocava na bola. A situação tornava-se ainda mais desagradável quando o rapaz, também negro, do tabuleiro das pipocas, circulava por entre os espectadores. Isto é assim há anos, desde que levo o meu filho mais velho ao futebol. No meu tempo de puto era melhor, só chamavam "cabrão do preto" , não imitavam os sons dos macacos. Os psico-sociólogos de pacotilha pretendem convencer-nos que é o ambiente de massas que nos faz piores do que somos. Mas a verdade é que vivemos a semana condicionados pelo peso de dezenas de convenções, e uma vez por outra, como ao Domingo na bancada, somos finalmente aquilo que somos: umas bestas.
Comentário a alguns comentários: Não utilizei a palavra "racismo" no meu texto, porque o assunto era a bestialidade, ainda que no caso descrito, revestida de algo relacionado com a coisa rácica. Concordo que já não se ouvem tantas interjeições macacóides como há 4 ou 5 anos ( apogeu do fenómeno, tem razão o Rui Baptista) mas ainda se ouvem, e o importante ( o insulto rácico) continua lá: para um jogador adversário branco, usamos o que usamos entre nós, numa discussão de trânsito, por exemplo; se o futebolista é negro acrescentamos a desqualificação da cor/origem, como na expressão "ó macaco!". Quanto ao Dário ser um jogador querido da massa associativa e ser negro, não percebo a surpresa do leitor: sempre existiram "pretos bons" - os "nossos", os bem-comportados - e "pretos maus": os "outros", os rebeldes, os fugitivos. O leitor que me falou de serventia ao politicamente correcto não me belisca, pois que eventuais conexões entre o que defendo e "essa coisa", não me fazem deixar de escrever o que entendo que tenho de escrever. Mas o leitor não deve ser cliente regular desta nau, ou teria lido o que publiquei há uns dias: um "poema" da guerrilha anticolonial portuguesa da Guiné, que chamava "macacos" aos negros que colaborassem com o ocupante português.
Mar de opinioes, ideias e comentarios. Para marinheiros e estivadores, sereias e outras musas, tubaroes e demais peixe graudo, carapaus de corrida e todos os errantes navegantes.