MEMBRA DISJECTA: Isto é um martírio, sempre foi. É um martírio sobretudo a ausência. Se de um marido contratado nos anos setenta, prolongado. Se de um filho que se foi numa curva das auto-estradas do Cavaco, abreviado. Ouço e cheiro estes relatos martirológicos há muitos anos. Enfado-me e arrependo-me. O mártir, o mártyr grego para testemunha, sim, esse cristão que nos tempos de Nero e de Diocleciano se recusava a negar a fé, é um ser enfadonho. Recusa-se a esquecer, mesmo quando vai trabalhar, comer, fornicar. Por piada costumo dizer-lhes, a eles, aos mártires, que são como os habitantes das cidades bombardeadas: no dia seguinte amontoam uns tijolos e afixam um letreiro com o preço do pão.
A ideia segundo a qual se renasce após a tragédia é cara aos estóicos. O termo Renascença no seu sentido socio-político, só toma o seu significado actual, como se sabe, com Burckhardt. Mas Maquiavel ( nas Histórias Florentinas) utiliza-o no episódio da Cola di Rienzo, a propósito da renascença de Roma ( Roma rinata), e Mantegna também, no seu S. Sebastião, hoje no Louvre. A coisa é velha de séculos, com Maquiavel ou com as flechas do destino de Mantegna: depois da peste, a vida; só a resistência é divina.
Reside aqui vagamente a interpretação popular do estoicismo, como se resistir fosse uma questão de vontade ou de necessidade. Tomara. A resistência estóica é um assunto de virtude e de sobrevivência, aquela encontrando esta num feliz acaso. A peste foi um acaso. Por isso, quando perdemos quem amamos, alimentamo-nos literalmente da resistência. Cada músculo, cada som, cada gesto é uma homenagem. A nós, aos que ficamos com o que sobrou.
posted by FNV on 9:50 da tarde
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LES UNS ET LES AUTRES: Concordo com Vital Moreira na análise que faz no Causa Nossa ( link directo indisponível) aos 9000 atestados médicos dos professores e a inexistente auto-regulação da Ordem dos Médicos. Mas Vital Moreira esqueceu-se de aflorar um detalhe: quando a Inspecção Geral do Ensino ameaçou investigar, 2000 professores ficaram súbitamente saudáveis. O Presidente da FENPROF, confrontado com o milagre terapêutico, saiu-se com esta pérola da sem-vergonhice corporativa: os professores tinham interpretado mal a lei. Um milagre jurídico, pois também.
posted by FNV on 3:53 da tarde
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APARELHINHO: João Soares ganhou e com maioria absoluta numa única secção de voto socialista: Ponte de Lima. Segundo o Público de hoje, tal fenómeno "explica-se pela influência de que José de Barros Gonçalves ( fundador do partido no concelho) ainda desfruta no interior da secção". Barros Gonçalves, ainda segundo o jornal, "é amigo de longos anos de João Soares".
Sobrou a João Soares o apoio de fundadores. O que lhe faltou foi mais amigos nas bases .
posted by FNV on 11:57 da manhã
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PARA O NEPTUNO que, como todos nesta nau sabemos, não tem medo da vida:
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca esperada
Ela que é na vida
a grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida!
Vinicius de Moraes
posted by NMP on 4:57 da manhã
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AS EXPECTATIVAS: A ideia de que Kerry ganhou o primeiro debate televisivo com Bush parece estar a impôr-se. Há alguns bons motivos para tal. Kerry apresentou um ar mais calmo e seguro do que um Bush invulgarmente disperso e irritadiço. Partindo de uma posição em que lhe seria mais difícil argumentar, apresentou-se mais articulado e consistente que um Bush repetitivo e sem cham. A discussão, por sinal bastante substantiva, foi entre duas visões diferentes sobre a guerra do Iraque. E também aí Kerry se saiu bem, uma vez que algumas das inconsistências e incoerências do seu discurso, como o voto pela guerra mas contra o seu financiamento e algumas frases mal calibradas, passaram incólumes sob o olhar de um Bush em noite sem killer instinct. O debate foi sem dúvida um bom momento numa campanha que caminhava perigosamente para um nível muito baixo. Os americanos foram confrontados co duas alternativas claras e bem definidas sobre como abordar questões centrais da política externa americana, da guerra do Iraque passando pela Coreia do Norte até ao genocídio de Darfur.
O efeito que se vê nas sondagens publicadas logo após o debate limita-se a reflectir uma questão de expectativas. Por muitas razões (a aura que o poder trasmite, o patriotismo à flor da pele natural numa nação em guerra e um discurso pouco consistente dos democratas sobre a matéria), um debate sobre segurança interna e política externa era à partida o mais difícil para Kerry. O facto de a ele ter sobrevivido sem estragos de maior explica grande parte da reacção positiva do público.
Estes números, no entanto, não permitem muitas conclusões. Antes do debate, a esmagadora maioria dos americanos, em números em torno dos 60%, achavam que Bush seria um melhor comandante-chefe, contra cerca de 35% que consideravam Kerry mais apto para essa função. Se as sondagens dos próximos dias confirmarem ter havido uma alteração sensível nestes valores, com uma aproximação de Kerry, então sim o debate terá sido muito proveitoso para o democrata. Significa que os americanos passaram a considerá-lo seriamente como uma possível alternativa para seu líder em tempo de guerra.
Até lá, os números até agora divulgados mostram apenas que os americanos esperavam que Kerry fosse esmagado neste tema. O que não aconteceu e, como veremos nos próximos dias, pode ter sido ou não um momento de viragem na tendência geral destas eleições.
CÓDIGO DE ÉTICA DAS TV'S NO CASO DA PEQUENA JOANA:
Sua passion' predominante
è la giovin principianti.
( Dom Giovanni, nº 4 Ária )
posted by FNV on 7:33 da tarde
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A GRAÇA DA LÓGICA: No Público de hoje, Santana Lopes "pede um estado de graça, porque todos os executivos merecem". Estamos perante um exemplo claro de argumento condicional, cuja validação assenta na afirmação do antecedente ( modus ponens):
Se todos os novos executivos merecem um estado de graça,
se este é um novo executivo,
então este executivo merece um estado de graça.
Como sempre, no estudo da validade dos argumentos temos de examinar a validade das premissas. Se a primeira pode ser considerada verdadeira, já a segunda, ( da qual depende a afirmação do antecedente) pode ser considerada falsa? Se entendermos que o actual executivo foi mandatado por Sampaio para continuar as políticas do anterior, assenta no mesmo entendimento CDS-PSD, e inclusivamente mantém elementos do anterior executivo, a segunda premissa é falsa. Logo a conclusão do argumento é falsa, o argumento é inválido.
Se entendermos que a segunda premissa é verdadeira e que este é de facto um novo executivo, e que todo o novo executivo tem normalmente um estado de graça, não se percebe porque é que esse estado tem de ser pedido.
ASSISTÊNCIA SOCIAL: O Diário de Coimbra de ontem ( 4ªfeira) trazia um anúncio de quase página inteira, no qual o Presidente da Câmara da Figueira da Foz convidava a população a assistir à visita que Sexa o Primeiro-Ministro fará ao Concelho e na qual assistirá à celebração do protocolo de construção da nova auto-estrada. O povo agora é convidado a assistir à assistência. Acho muito bem. Desde que o povo também seja convidado a assistir aos banquetes, aos beberetes, às reuniões do Conselho de ministros, às conversas entre autarcas e construtores civis, e por aí fora. Assistir só a assistências até parece batota.
ÉDIPO EM DIRECTO: Logo, a partir das 19.45, na RTP1. Espero que depois não se ponham a vazar os olhos. Ah: e não se aceitam piadinhas de mau gosto acerca da etimologia de Oedipus.
posted by PC on 2:46 da tarde
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PROVÉRBIO CHINÊS: É curioso que Sócrates, quando enfrentou a contestação à co-icineração ( liderada sobretudo pelas autarquias atingidas) era um político "corajoso", "decidido", e que "não cedia a populismos fáceis". Hoje é visto precisamente de forma contrária; A única coisa permanente na vida é a mudança, ou não é?
posted by FNV on 1:29 da tarde
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ISTO ASSIM NÃO É VIVER: Dizia-me ela com uma certeza cósmica: perdi quatro anos da minha vida. Isto porque demorou muito tempo a fazer o luto, como dizem os psis. É curiosa esta nossa ideia de que a vida é um investimento a rentabilizar. Também já a propósito de casamentos infelizes ouvi frases destas, o intervalo temporal do desperdício variando em função do rancor pós-conjugal. Mas Séneca, que inventou a fotografia, explicava que só podemos estar seguros do nosso passado.
O sentimento que desperdiçámos anos da nossa vida é compreensível apenas à luz da tal certeza de que o tempo é nosso, e que por isso tem de ser bem empregue. Como vamos morrer no final de uma vida longa mas curta, as horas têm de ser aproveitadas, e só contam para o campeonato as horas felizes. Claro que um estóico da velha cepa diria aos moços e moças que como nunca sabemos quando a corrida acaba nem como decorre, todas as horas são valiosas, todas são irrepetíveis. Não me parece que fosse ouvido: há muito que dividimos a vida em duas: a que vale a pena e a que é um desperdício. Como poderia ser de outro modo se legiões de aldrabões licenciados nos convencem todos os dias que o nosso sofrimento deveria ter sido evitado?
posted by FNV on 11:44 da manhã
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SARAVÁ:: Um abraço especial ao Luís, da Natureza do mal, que me recolheu a meio do Mar Morto e ao Francisco José Viegas, interlocutor pacientíssimo. Durante a calmaria também aportei bastas vezes no Barnabé e no Blasfémias, que não me puseram a ferros. O JPH do Glória Fácil é o tipo mais simpático que não conheço.
posted by FNV on 2:02 da manhã
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O COISO: Nas caixas multibanco introduzem-se e retiram-se coisas, boas e más. Mas ao contrário de outros lamaços, é obrigatório digitar. Ora, um não-fumador tem o direito a não ser incomodado pelo fumo do fumante, mas eu não tenho o direito a ter um teclado limpo de excrescências nasais e auriculares de terceiros. Como sempre, o tipo que estava à minha frente na fila da caixa do multibanco, enquanto aguardou a sua vez, limpou (?) com o dedo indicador direito todas as cavidades disponíveis descobertas: nariz, dentes, olhos remelosos e duplo queixo. Chegada a sua vez, utiliza o mesmo vector de parasitoses várias para digitar o código que lhe permite aceder à sua conta. Na minha infeliz hora, se por acaso não trago comigo uma caneta ou um conjunto de chaves é quase como se tivesse ido para a cama com o indivíduo. E eu pergunto: não podem os bancos, a troco de uma mensalidade de digamos, dois euros, disponibilizar para os seus clientes (que quando quiserem apanhar malária voluntáriamente vão de férias para a Mauritânia) um dispositivo que lhes permita aceder a um teclado esterilizado? O coiso estaria inserido na caixa, e mediante a introdução do cartão apareceria reluzente e obedientemente. Depois de utilizado, o coiso recolheria à base e auto-esterilizava-se. É assim tão difícil ?
MISÉRIA: Segundo li algures, o caso do assassínio da pequena Joana no Algarve, com todos os seus contornos escabrosos, releva da miséria económica, social e moral que caracteriza a vida de alguns portugueses. Penso que essa miséria moral também é evidente nas dezenas de pessoas que se deslocam diariamente à pequena aldeia de Figueira, junto da casa onde vivia Joana, sabendo que se procura o cadáver da pequena vítima e fazendo-se acompanhar por crianças, algumas ainda de colo.
posted by Neptuno on 1:06 da tarde
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ORA BOLAS!: Logo quando me preparava para cometer um crime de abuso de informação privilegiada, comprando fardos de acções do Mar Salgado, eis que o nosso FNV reaparece antecipadamente, pronto para perseguir todas as formas de estupidez, sicut lepra leprosum. Ide, e espalhai a boa nova.
posted by PC on 2:15 da manhã
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A ABERTURA DO ANO ESCOLAR: "Quynto, cavalgar sem estrebeiras em bardões, ou todo em ousso. E aquestes tee sua meestria no apertar das pernas, e teersse dereito. E tee tres deferenças: Primeira, com as pernas tendidas e apertadas nos geolhos e das coxas. Segunda, encolhendo as pernas todas e çarralás com a besta. Terceira, apertando assy todallas pernas, metendo as pontas dos pees acerca dos cóvedos das bestas."
"Livro da ensinança de bem cavalgar toda a sela", El-Rey Dom Duarte, cap.VI
posted by FNV on 1:44 da manhã
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A TRANSIÇÃO: Fazendo fé em Muchembled, encontra-se na Biblioteca de Lille ( manuscrito nª 116 do catálogo de Rigaux) um receituário médico escrito entre a Candelária e o São João de 1358. Prescrevia que para o mês de Setembro todas as comidas eram boas, mas que Outubro deveria ser reservado às purgas: uvas em jejum e leite de cabra para lavar o estômago. Setembro era um resto de Verão e o cabedal tinha de vindimar, Junho tinha sido o tempo das uniões permitidas. O Outono, estação de serviço, era assim destinado à limpeza e ao decoro. Bons tempos.
"FIDELIZAÇÕES E CLIENTELISMO": São situações que, segundo Manuel Alegre ("MA"), urge alterar profundamente no PS. O discurso de Manuel Alegre enquanto candidato à direcção do PS suscita a simpatia de todos os que se interessem minimamente pela política. É que o seu diagnóstico é extensível a todos os principais partidos políticos e, infelizmente, também ao próprio Estado, para o qual os partidos transportam a sua lógica de funcionamento, uma vez no poder.
O poder político é exercido de uma forma viciada. As fidelizações e o clientelismo sobrepõem-se ao interesse público e esse fenómeno tem origem nos partidos políticos, tal como actualmente funcionam, dos quais o nosso sistema político é refém.
Penso que devemos lutar contra esse status quo e que, como diria MA, esse é um combate que merece ser travado.
PARA MAIS TARDE RECORDAR: Tenho um amigo que é capaz de se lembrar com exactidão, entre outras coisas, do resultado do Sporting - Estoril da época de 1979-1980 (1ª e 2ª voltas). Infelizmente, a memória das pessoas e dos povos vai-se tornando progressivamente mais curta, por razões que ainda se desconhecem.
Vem isto a propósito do texto de Vasco Pulido Valente no DN de hoje. Não lhe bastando o título indisputado de drama queen da opinião lusa (apesar da corte de emuladores que criou e inspira), VPV assume agora o terrível cargo de Grande Adivinho da Aldeia. Vaticina VPV, por causa da vitória de Sócrates, que "esta eleição do PS será provavelmente a última em que a Esquerda se atreveu a mostrar a cara".
Aí uns 30% dos portugueses passam assim, subitamente, à clandestinidade. Nem Salazar conseguiu tal proeza.
Convém anotar o prognóstico; até para, daqui a uns anos, a Esquerda restante poder lembrar com precisão, nas suas reuniões clandestinas, o homem que a riscou do mapa.
Mar de opinioes, ideias e comentarios. Para marinheiros e estivadores, sereias e outras musas, tubaroes e demais peixe graudo, carapaus de corrida e todos os errantes navegantes.