O JACOBINO DISTRAÍDO: Leio uma vez mais a crónica de João Carlos Espada ( que leio desde os tempos dos cadernos "Risco" e do Clube da Esquerda Liberal) no Expresso de hoje, e lamento profundamente. Lamento que a crítica à juvenilização e à miniaturização gastro-sexual do homem ocidental de hoje encontre o seu maior arauto em Portugal em João Carlos Espada. Quanta gente este homem, com as suas intervenções travestidas por uma admiração adolescencial pelas pedras de uma escola de elite e por uma cripto-conversão serôdia à fé, quanta gente, boa gente diria eu, afasta ele do bom caminho. O jacobinismo, ou seja, a ideia de que o mundo pode ser transformado pela acção política, encontra em JCE um fiel seguidor. Sem ele dar por isso, naturalmente, embora agora pareça apreciar conventos, como o edifício dos frades jacobinos ( dominicanos) que servia de sede às reuniões dos radicais do ex-Clube Bretão, em 1792.
posted by FNV on 9:07 da tarde
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WEBLÂNDIAS: O artigo foi publicado no passado mês de Dezembro, no American Anthropologist ( vol 106, No4, pp651-662), e tem como título "The Vulgar Spirit of Blogging: On Language, Culture, and Power in Persian Weblogestan". O autor, Alireza Doodstar, partiu de uma polémica na blogosfera iraniana ( "weblogestan") para fazer uma análise com todos os matadores dos area studies/cultural studies ( vai buscar Geertz e os seus estudos sobre as lutas de galos no Bali!), da matriz genética do discurso do blogger. Partiu de Bakhtin, e do seu conceito de "género/estilo discursivo" ( speech genre), para desenhar a linguagem do blogger como um género discursivo próprio. A polémica na blogosfera iraniana começou porque um conhecido blogger, Derakhsan, criticou a afirmação do seu compatriota Shirin Ebadit ( laureado com o Nobel da Paz) que entende o Islão como compatível com os direitos humanos. Um outro conhecido blogger, um jornalista e crítico literário, Reza Shokrollahi, caiu-lhe em cima, e no seu blogue criticou severamente Derakhsan, utilizando-o como um exemplo da vilania da blogosfera. Shokrollahi disse que o "weblogestan" é um local onde a língua persa é maltratada ( ponto importante no seu argumento), e onde indigentes de toda a espécie se arrogam do direito de escrever o que lhes apetece, sem respeito pela forma ou pelo conteúdo; a vulgaridade ( ebtezaal) é o ponto central do argumento de Shokrollahi, que se furta às acusações de censor ( como se rareassem por aquelas bandas), publicando no seu próprio blogue excertos de novelas erótico-vulgares proibidas pelo regime. O autor do artigo, Doodstar, faz uma excelente análise da estrutura discursiva da blogosfera, mas não avança muito para além das conhecidas leituras da utilização da linguagem como forma de dominação cultural e política ( basta ler Orwell ou Wittgenstein para o compreender). Por outro lado, alinha algo incompletamente o argumento de Bakhtin: sublinha a matriz identitária de cada forma de expressão e a sua correspondente codificação no contexto da própria expressão, mas poderia ter ido mais longe, por exemplo até ao que Bakhtin designava por "singularidade temporal e espacial da expressão". E aí seria interessante especular sobre a evolução da "vulgaridade" da blogosfera iraniana. Resta que este debate, aplicado à blogosfera portuguesa (a webtânia?), tem pontos em comum. Também por cá, a reacção de muitos literatos e autoridades comunicacionais do regime, consistiu inicialmente em ostracizar os bloggers, desdenhando a mania que estes têm de escrever(?) sobre tudo e nada. Os jornalistas, esses, fizeram diferente: entraram na webtânia, marcaram terreno e festejaram. Do meu ponto de observação, este debate iraniano é excitante porque armadilha o terreno da discussão sobre a resistência do Islão anti-moderno às práticas culturais ocidentais. São os próprios iranianos que adequam a blogosfera à sua predisposição para enfrentar questões de regime e de civilização. E é bom não esquecer que já existia Pérsia muito antes de nascer Maomé...
posted by FNV on 11:33 da manhã
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«A MINHA PISTA DE CARRINHOS»: Lembro-me como se tivesse sido ontem. Saímos de casa num sábado de manhã e o mano mais velho levava o pilim porque eu «ainda era pequeno demais para andar com tanto dinheiro». Eram 4.300$00. Tinha poupado tostão a tostão durante anos para a comprar e tinha-a namorado durante meses naquela montra inacessível, com medo de que desaparecesse, com medo de que alguém a comprasse (na altura, os bazares não tinham o stock infinito que hoje têm e eu pensava que, se aquela pista fosse vendida, nunca mais encontraria outra igual. Felizmente, na época, os brinquedos também não desapareciam dos escaparates com a facilidade e rapidez com que hoje voam...). Era da Jouef (a marca tinha sido decidida com rigor mas parcimónia). Era um oito com uns "esses" suplementares. Trazia um Porche 991 amarelo e aquele belíssimo BMW 2002 GT branco com riscas azuis e vermelhas. Achávamos o BMW mais leve e por isso mais rápido nas rectas mas o Porche era muito ágil nas curvas e rabiava maravilhosamente. Uns tempos mais tarde convenci o caçula (que nem achava muita graça àquilo) a comprar um Alfa Romeu GTV 2000 cor de vinho (um pouco ronceiro e escorregadio nas curvas mas muito fiável). Entrámos na época da F1 e adquiriu-se um Brabham BT 46 (o mais rápido); um Wolf, o Tyrell 008 da First National City e, claro, uns quantos Ferraris (a minha única concessão ao vermelho...). Depois uns Porches e Renaults da categoria Le Mans (ainda hoje me recordo com enorme gozo da maravilhosa confusão que criei no grupo de amigos que, em Barcelona, teve de esperar pelas minhas escolhas na loja da especialidade). Ao mesmo tempo, a pista ia crescendo, com a compra de diversas placas de recta (150$00) e curvas diversas (120$00). Tenho ideia de que a empregada do Bazar Coimbra (julgo que agora se chama Românica) me odiava por eu passar o tempo a perguntar quanto custariam os rails, os pneus suplementares, os motores, as placas, as escovas, enfim... toda aquela parafernália que eu adorava possuir. Ao longo dos anos a pista foi crescendo. Num ano de grande generosidade, foi-me oferecida uma mesa enorme, monstruosa, que ia para o pátio no Verão para os concursos de ping-pong familiares mas que, no Inverno, era colocada numa das salas para acolher a minha pista, que já só cabia na dita mesa com longas rectas nas extremidades e um miolo cheio de curvas. A última vez que (parcialmente) a montei foi numa memorável noite de estudo de Direito Constitucional com excelentes amigos, embora tudo tenha acabado num acidente terrível (uma vez mais provocado pelo álcool ao volante - um dos convivas fez tombar uma garrafa de Johnnie Walker sobre as calhas).
Adorava a minha pista de carrinhos, adorava-a mesmo! E gastei com ela rios de dinheiro. Enfim... claro..., nada comparável com o que Rui Rio gasta com a dele.
UM FIEL RETRATO MEU: Menandro põe Cnémon a dizer a Górgias (O Díscolo, 740-745): "Se todos fossem como eu, nem havia tribunais, nem se metiam uns aos outros na prisão, nem havia guerra. Todos se contentavam com a mediania."
DEIXAR DE ESTAR LÁ (OU PASSAR A ANDAR MESMO POR AÍ): o truculento presidente do governo regional da Madeira, com as mudanças legislativas que se preparam (que, claro, toda a oposição vai aprovar, e que depois não poderão ser desfeitas, por faltarem os dois terços), arrisca-se mesmo a, a prazo, ter de passar a andar apenas por aí - ou melhor, a deixar de estar lá, como presidente do governo regional. Para além da questão da oportunidade da inclusão dos presidentes dos governos regionais (não é propriamente um regime-"fotografia", mas o personagem encaixa bem no retrato e o PS com certeza que não fugiria à tentação de o desenhar), o que se oferece dizer (e não propriamente lamentar), de uma perspectiva também "interna", é que este foi sem dúvida o melhor presente que o grande ganhador de eleições e seu amigo Santana Lopes lhe deixou. Enfim, que não venham queixar-se dos outros, se passarem os dois efectivamente a andar apenas por aí ! ...
CARO PPM: Acabo de ler o seu inopinado comentário acerca das minhas aspirações. Nunca pensei que pudessem ser matéria de discussão pública. Mas, já que levantou o assunto, em verdade lhe digo: o problema não são os links que não consegue fazer em casa; são os links que consegue fazer na sua cabeça.
posted by PC on 10:45 da tarde
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A ILHA: Se existe uma maioria no parlamento e um presidente da República que são favoráveis à alteração da lei do aborto, porque é que se há-de fazer um referendo? Para ouvir o povo, dir-me-ão. Para ouvir o povo ou para ouvir os berros de quaquers brandindo fotos de fetos de 28 semanas? Para ouvir o povo ou para ver as barrigas de meninas auto-satisfeitas que confundem o mundo com o próprio umbigo? Alterem a lei numa proporção razoável, distribuam preservativos como Reich fazia nos bairros operários de Viena dos anos 20, e mandem vir mais imigrantes. O povo é sábio, vota uma coisa mas faz outra. O que o povo precisa é de um balneário para morrer sossegado, como na ilha de Coetzee.
posted by FNV on 7:48 da tarde
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CORES: Porque é que Ezra Pound está tão obcecado com o Outono no Hilda's Book? Em quatro poemas quase consecutivos, o Outono é utilizado como (óbvia) configuração mutante do belo em saudade, eis porquê. Mas a verdadeiramente bela declaração de amor de Pound a Hilda Doolitle é esta:
one whose soul was so full of rose leaves steeped in golden wine that there was no room therein for any villeiny _
posted by FNV on 12:52 da manhã
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IN-DECISÕES: A identidade europeia deve tanto à acumulação de capital-terra que possibilitou o projecto colonial, como a Roma ou à Hélade. A Europa, desde Quinhentos, foi uma mobilização constante de letras e missionários, metais preciosos e distâncias tornadas sensíveis. A nossa crise começou quando se acabou a ordem natural: adquirimos parceiros, deixamos de ter possessões imperiais. O projecto comunista foi a última hipótese de existir uma Europa alter, que mimetizasse, do Reno à Dalmácia, o antigo sistema de construção identitária. O rumor crescente do "não" à argamassa unionista, num momento em que a potência é americanamente distante, e Bruxelas uma convenção de tradutores, traduz fielmente a estratégia: sabemos o que não queremos ser, não fazemos a menor ideia do que somos.
YO SOY UN HOMBRE SINCERO:O Acidental completou o seu primeiro aniversário na blogosfera e, por isso, merece felicitações. Mas não só por isso: também porque é, em geral, um blogue de escrita prazeirosa, qualidade que muito se estima aqui. Ainda por uma outra razão, mais pessoal, que eu gostaria que não fosse mal interpretada: O Acidental resume, no estilo e no conteúdo, a antítese das minhas idiossincrasias. Como a identidade se constrói, ao menos em parte, pela consciência da alteridade, O Acidental ajuda-me, de forma notavelmente consistente, a fixar os contornos desse oposto, na discussão democrática e reflexão honesta em que acredito. Não é uma felicitação cínica - é só um imperativo de sinceridade. Obrigado, e parabéns!
RECIPROCIDADE: O acesso ao Mar Salgado passa a ser pago, mediante assinatura mensal, para todos os leitores que provenham do domínio publico.pt e, para evitar abusos, do link do Glória Fácil. O JPH, a ASL e o NS receberão, evidentemente, uma palavra-passe gratuita, para exclusivo uso pessoal.
DA REVOLUÇÃO: Maradona chega à Venezuela e em vez de beijar o chão como o Papa, diz viva a revolução, não faz mal, ninguém nota a diferença. Sempre que alguém ama um inimigo aparece a imortalidade de Cristo, dizia Borges, que se estava nas tintas para o futuro das placas de mármore. A linguagem da infecção, que aparece tão bem no HIV - não é melhor usarmos amorzito? - extravasa as campas e há-de dar-nos a vida-longa dos Etíopes de Heródoto. Não é preciso beijar a revolução-chão, somos o chão da revolução: astros sem cauda, logo sem elipse.
posted by FNV on 11:47 da manhã
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SINAIS: Este extraordinário governo, que nos esmaga de tanta qualidade, segundo as misteriosas palavras do Dr.Freitas do Amaral, ainda não abriu a boca sobre um assunto preocupante: a seca alastra, as matas continuam abandonadas, e a possibilidade de um Verão incendiário é real. A política de fogos do anterior governo foi marcada por uma edificante peixeirada entre o governante responsável e os bombeiros, se bem se lembram. Ora, esta conjugação de factores não augura nada de bom. Dizia-me um doente meu que está a trabalhar para "os chilenos", que lhe pagam 35 euros por dia para roçar mato; Este contrato com a empresa chilena vem do tempo do governo do Dr. Barroso. Assim, a menos que na sombra, este governo esteja a trabalhar de forma esmagadora, será talvez útil preparar-mo-nos para mais um debate escatológico sobre "o problema dos incêndios em Portugal". Pelo sim pelo não.
EM FORMA DE PRESENTE PARA O FRANCISCO: O nosso traficante de pedras preciosas, além de celebrar aniversários, tem boas notícias para quem estiver no Porto no dia 15. Ora vão lá ver... E cada um dá o que pode: com um ano de atraso, chega-me às mãos o extraordinário L'absence, de Hector Zazou. Três fascínios: o hipnotizante Etranges attracteurs, a versão de Elle est si belle e o lynchiano Eye spy. O disco é apresentado assim pelo próprio Zazou:
"J'avais d'abord pensé à Room Service. Un titre un peu ironique qui devait accompagner une musique plus « facile » que celle de mes disques précédents. Une production électronisante, sans aspérités, avec juste assez d'originalité pour ne pas déranger. Mais voilà que j'écoute l'ensemble des morceaux, alignés les uns derrière les autres, prêts à partir à l'usine de pressage et que je me dis : « Room Service? Non, ce n'est pas possible. C'est bien trop mélancolique ». Là où je voulais passer sur la pointe des pieds, je m'aperçois que je fais craquer le parquet. Et tout à coup me revient ce passage de « A La Recherche Du Temps Perdu » où le narrateur de retour chez lui, à l'improviste, regarde avec tendresse sa propre mère qui ne l'a pas encore vu. J'étais présent, dit-il, à ma propre absence. C'est exactement l'effet que m'a fait cette écoute. Je m'étais absenté de la musique, j'avais voulu la vider, la gommer de toutes les aspérités, m'en retirer pour ne pas déplaire et voilà que ces notes, ces accords et ces phrases se sont regroupés, presque à mon insu, pour me renvoyer mon image, pour recréer, en mon absence, celui que je ne peux éviter d'être. À quoi bon lutter contre soi-même? Autant laisser faire son savoir faire. Et celui de tous les invités qui comme d'habitude viennent boucher les trous de mon imagination et enluminer les murs de mon salon de musique (...)" (para ler o resto do texto, clicar aqui e, depois, sobre a capa do álbum). Parental Advisory: Desaconselhado aos francófobos, aos islamófobos e aos anti-materialistas: Zazou nasceu na Argélia francesa e é marxista.
ESPERA-SE A TODO O MOMENTO uma redacção do nosso FNV subordinada ao tema "Os Passarinhos da Ribeira". Familiarizado que está com a pronúncia, é de crer que o autor inclua uma tradução oficial das declarações do eloquente Petit acerca dos "incentibos" que, "por trás", "galbanizaram" os adversários.
posted by PC on 10:13 da tarde
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NEVOEIRO: Na TSF está a discutir-se a relação entre a "poderosa indústria farmacêutica", como Carlos Pinto Coelho a designa sempre, o que nos faz suspeitar que se ela fosse uma "pobre indústria", seria mais respeitável. A certa altura, um dos intervenientes, julgo que um médico, diz isto: " eu estou à vontade para falar, sou virgem, nunca jantei à custa de ninguém". Bom, eu não sou virgem "nisto", em novinho tive amigas e namoradas bem mais velhas que me ofereceram belíssimos jantares. Mas a nota vai para a hipérbole: este tipo de discurso neo-calvinista destina-se a confundir propositadamente o público. O problema excede a minha capacidade argumentativa, mas sublinho a artimanha retórica: um jantar ( ou uma caneta) em acção de relações públicas, não vale o mesmo do que uma lista de clínicos bons prescritores, remunerados (in)directamente em função dessa prescrição, independentemente das necessidade reais dos doentes.
posted by FNV on 11:37 da manhã
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ZOMBIE LORE: Estão reunidos em Pombal, terra insuspeita de albergar tais mutantes. Em vez das lérias divulgadas por Hollywood, prefiro os trabalhos do etnobiólogo Wade Davis, que explica que os haitianos não têm medo dos zombies, têm medo de se transformarem em zombies ( isto envolve o uso de uma droga interessante, a Datura stramonium, mas fica para outra ocasião). Em Pombal, pelo que estive a ver na TV, os zombies não sabem que são zombies. Alguém os avisa?
Mar de opinioes, ideias e comentarios. Para marinheiros e estivadores, sereias e outras musas, tubaroes e demais peixe graudo, carapaus de corrida e todos os errantes navegantes.